terça-feira, 27 de novembro de 2007

Flashing Lights



Ando depressa . Não noto muito os outros
Vejo à frente os pontos de luz . e sigo
Todo o entorno se turva . cars . peoples . flashing lights . dinners
O tempo se dobra sobre . lembro de maria magdalena lavando os pés de um amigo próximo
Salto . sigo . correndo por entre os vastos campos de arroz
O orvalho na sola dos pés
Me chora a chuva
A espada então reluz com as gotas
Semi-cerro o olhar . E os pés descalços se dissipam na calçada
Minha espada reluz com as lágrimas da chuva
Descalço piso firme o vasto campo . e posso inflar os pulmões a gritar

sábado, 27 de outubro de 2007

Jazz

Andrew Knoll se perde em meio a tantas notas de jazz
Caem junto com a noite na sua imensa solidão (prisão que se estende por todo o universo conhecido)
Não há liberdade em peito que não se desata o nó
Andrew Knoll não se desata em nós
Eu aperto o aperto ainda mais
Não há o que me desfaça
E já não o há no quando se desfaço

sábado, 29 de setembro de 2007

SEJAMOS REACIONÁRIOS

O conceito de engajado é aceito se for revolucionário, mas não se servir a uma nostalgia.

A arte engajada costuma ser um cemitério de talentos ou uma coleção de inutilidades. Consome algumas das melhores vocações e alça à condição de “artista” gente que, no geral, não tem nada a dizer. Não raro, a incompetência se soma à mistificação, e o produto final se justifica por um valor que está fora da própria obra, que lhe é externo. Arte, qualquer uma, não tem função instrumental, não serve para nada. E não tem de servir mesmo. Deve apenas satisfazer as obsessões de seu criador. Quanto mais alienada, melhor!
Quando se fala em engajamento, é claro que se está falando de política. E a política é um discurso de chegada, que busca uma solução para um conflito ou um problema. E assim tem de ser. Só alguns filósofos imaginam que a polis é o lugar da permanente indagação, e não das respostas. É por isso que sempre são maus políticos ou apologistas de candidatos a déspotas. Diria, com algum humor, que, quando se metem em questões públicas, acabam rendendo suas homenagens ao tirano de Siracusa da hora. O governo Lula o aprova. Maiores explicações devem ser buscadas com Renato Janine Ribeiro e Marilena Chauí.

"O bom propósito de um príncipe idiota termina num mar de sangue. "

Se a política não oferece saídas, então não serve para nada: torna-se ou o exercício estéril da utopia – o “lugar nenhum” – ou degenera em terror homicida. E soluções têm de necessariamente fazer a vontade da média, do homem comum, de responder, se democráticas, às expectativas e aos anseios da maioria – e, pessoalmente, só aceito a democracia como regime. A razão de ser do discurso político está na organização da burocracia de Estado e na eficiência do diagnóstico e da solução. O que a literatura, a música, a pintura ou o cinema, para citar algumas artes, têm com isso? Nada. Sua razão de ser está no balanço entre a gratuidade e a contestação: gratuita, não tem outra função que não se exibir, ser o que é com finalidade nenhuma; contestadora, opõe-se justamente ao caráter instrumental do discurso de eficiência.
A esquerda já falou e produziu muita bobagem nessa área. O conceito corriqueiro de arte “engajada” ou de “contestação” (não no sentido que abordo acima) pressupõe que ela seja esquerdista. Ou alguém pensaria no “engajamento” numa variada gama de, como diriam, “reacionários”, a exemplo de Céline, Ezra Pound, Fernando Pessoa, T.S. Eliot, Bernaros, Chesterton, dentre tantos? É claro que não! Afinal, à sua maneira, todos eles expressaram – ao menos o que havia de politicamente perceptível na obra – visões de mundo, ou minoritárias (“minoritaristas” talvez ficasse melhor) ou, de algum modo, inconformadas com o presente, mas nunca revolucionárias. Ao contrário: há um viés antimoderno no que produzem mesmo quando – e nesta pequena lista, os casos mais notáveis são Eliot e Pessoa – as conquistas da linguagem moderna servem a uma nostalgia, mas jamais a um projeto, da restauração.
É claro que aqui entra o viés de quem lê o mundo, de quem escreve (eu, no caso), com todos os juízos de valor e escolhas que me turvam o juízo. Se alguém quer a verdade cristalina, neutra, incontrastável, que vá ler Os Dez Mandamentos. Mas não há de fazer, especialmente se cumprir à risca os preceitos. Nas minhas escolhas falíveis, confesso a enorme indisposição com o discurso da denúncia, quase sempre acompanhado de auroras febris, que, curiosamente, seguem a crítica engajada como um cortejo de ninfas, em vez de precedê-la. Sempre que, numa obra, identifico o esforço para me venderem um herói da redenção, sem mácula, portador de algum amanhã escondido na algibeira, passo a torcer imediatamente para o bandido. Por que não posso ser só? Por que preciso de uma causa?
Ora, todos já lemos Hamlet, o menino maluquinho, mas com método, como queria Polônio. O bom propósito de um príncipe idiota termina num mar de sangue. Ele evoca a sanha homicida dos puros, o potencial assassino dos que querem justiça a qualquer preço. Hamlet, diga-se, seria assim uma espécie de artista de esquerda: recorre até a uma peça engajada, com intuito instrumental, para ilustrar e denunciar a trama que julga estar em curso no reino. E quem restabelece bom senso? Fortimbrás, que, numa seqüência que não houve, certamente conduziria o reino a uma mediocridade pastosa e estável. Era um bom político.
A minha indisfarçável simpatia está mais com os sonhos frustrados de restauração do que com a revolução porque o passado, sim, é a única e verdadeira utopia, o lugar que, de fato, não pode ser alcançado. Todas as nostalgias e todas as críticas e crônicas de uma ordem ameaçada que ambicione (ou ambicionasse) ser eterna me interessam. Acato o discurso político que se imiscui na obra de arte como o fazem Balzac, Proust ou o nosso gigante único, Machado de Assis, este secundado por Graciliano Ramos, que não permitiu que o comunismo lhe diminuísse a obra, felizmente. Em qualquer desses casos, têm-se a caracterização do espírito do tempo, de uma cultura, de uma, vá lá, metafísica de relações sociais que nada são além de uma personagem a mais – a exemplo da história que vivemos. Afinal, quem de nós consegue fatiar a própria história para fazer sociologia pessoal?
Nada do que considero de fato superior se rendeu a um projeto de futuro ou buscou a justiça imberbe de utopistas tarados por sangue. Com Eliot, tenho Virgílio na conta do sumo e do ápice de uma civilização. E ele fez, a exemplo de Leonardo ou Michelangelo, obra de encomenda – todos eles no conforto de uma civilização triunfante, que julgavam durar eternidade afora. O que há de contestador no que deixaram, e há, foi fruto do talento individual, de uma compreensão única de sua época, de anseios jamais compartilháveis. Tornaram-se marcos de uma civilização porque não se deixaram capturar nem mesmo por quem lhes sustentava a pena, a tinta ou o cinzel.
Se um artista não deve se render nem a quem lhe forra o estômago, por que se renderia a utopistas que lhe vendem baratinho um bocado de justiça social, mas só quando o amanhã chegar?

Reinaldo Azevedo é diretor de redação da revista e do site Primeira Leitura e autor de Contra o Consenso.









O "Machado" de Assis!

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A TRADUÇÃO DA IGNORÂNCIA

O kitsch é o desejo de agradar, e para agradar é preciso repetir o que todo mundo já sabe.

A história se repete e se repete outra vez com o mesmo negativo de sempre. Numa conversa com um grupo jovem de teatro off-off de São Paulo, ouço que a arte deve tratar da realidade e de uma realidade determinada, a objetiva - e não só da realidade objetiva como da realidade objetiva do coletivo. E de um curador não tão jovem, em outro contexto, escuto que a arte hoje não trata “do social” e que é preciso haver, algo de “simples” intensidade subjetiva e da fina sensibilidade. Era essa mesma a crença da resistência política nos anos 60/70 neste país que cansativamente se repete e é dela que alguns sentem falta, embora o século seja outro.
A questão não é se a arte e seu autor devem participar da discussão pública de seu tempo, comprometer-se ou não com a “realidade”: impossível, quase, evitar uma coisa e outra. A questão é como fazer isso. A ética da arte não está no seu grau de compromisso com a realidade, com a objetividade (remember Nelson Rodrigues e sua luta contra os “idiotas da objetividade” que o queriam encurralar) ou com o coletivo. Nem ao contrário disso. A ética da arte (romance, cinema, teatro) não está tampouco, como já se quis, na informação ou no saber que propaga.
A ética da arte depende de seu compromisso com a existência, que é singular (não com a realidade, que é geral), e do jogo que arma com o que h
á de desconhecido nesta existência. Expor o desconhecido não significa afirmar ou divulgar um saber – que na arte é quase sempre o já sabido. Em arte, o saber gira, como máquina solteira, ao redor de certezas e de idéias feitas. Já o jogo com o desconhecido, e sua eventual anulação ou superação, se faz na arte ao redor da incerteza e, na arte contemporânea, da complexidade – quase nunca isenta de perplexidade. O artista não é porta-voz da informação, nem do saber, ou da realidade, nem da objetividade e do coletivo. Nem de si mesmo. O artista contemporâneo é aquele que cria as condições, na obra, para que nela se processe o trabalho específico de sua arte – o trabalho do filme, o trabalho do romance, o trabalho da pintura – que, mais do que representar a existência, a põe em ação. Para ele mesmo e seu público. A arte contemporânea é esse trabalho, ele próprio uma existência – uma existência maior do que seu autor e seu público, razão pela qual esse autor não a controla e não a pode usar para transmitir informações, idéias feitas. Porque ele não sabe, antes de fazer a obra, quais serão essas idéias.
Romances que não acrescentam nada ao já sabido (e à arte) por serem “objetivos” e tratarem “da realidade” existem aos montões. Obras de arte visual, também. Caso recente é a série que Botero fez sobre as torturas praticadas pelos americanos em prisioneiros de Abu Ghraib. O termo para designar essa série é aquele que Milan Kundera privilegiou em suas reflexões sobre o romance moderno: kitsch, puro kitsch, quer dizer, a tradução da ignorância, feita de idéias feitas, na linguagem suposta da beleza artística e da emoção (no caso, da compaixão). O kitsch é o desejo de agradar, e para agradar é preciso repetir o que todo mundo já sabe e quer ouvir de novo. E agradar é pôr-se a serviço das idéias feitas. Não há, neste Botero, nenhum trabalho da arte. Nada mostra, nessas telas, que alguma foto e alguma reportagem não tenham mostrado antes e melhor. Que a rede Al Jazeera descreva a série em seu site como uma “brilhante coleção” de pinturas é previsível e irrelevante. Que o New York Times, pelas mesmas razões políticas ou quase, apresente Botero como o “mais conhecido artista latino-americano” – como quem diz “o melhor” – é mais grave, pela reiterada ignorância do norte sobre as coisas deste sul contur
bado mas não incognoscível. Falar em Botero e ignorar João Câmara, por exemplo, além de oportunismo, é um insulto à inteligência da arte. (Aliás, esse tipo de arte é quase sempre oportunista.) Em cada tela de João Câmara sobre o mesmo tema da política e da tortura (por exemplo, Uma Confissão, 1971), há todo um trabalho da arte do qual Botero não têm nem idéia. Que a revista americana Counterpunch, também para louvá-las, sugira uma proximidade entre essas telas de Botero e Guernica (1937) de Picasso é outro assalto á sensibilidade – uma tortura contra a arte sob a aparência de crítica à tortura e à guerra. Guernica é um caso maior da ética da arte em relação à realidade; não há, nela, concessão alguma, nenhum primarismo estético ou social. Como Premonição da Guerra Civil (1936), que Dali pinta no início da conflagração espanhola.
A questão, outra vez, não é participar ou não da discussão pública de seu tempo e tratar ou não da realidade, mas sim, como se faz isso.

João Câmara, Picasso, Dali o fazem do único modo ético da arte contemporânea: o da complexidade, criando espaço para que a perplexidade se instale ali onde não pode deixar de estar. A “mensagem” dessas três obras pode parecer agora direta, simples – e isso porque ela já se cristalizou pela força dos comentários e da experiência acumulada (que nem mais vivida a rigor é, por uma parte do público). De modo algum, porém, nesses três casos, a mensagem é uma idéia feita. Em nenhum deles é um kitsch.
A ética da obra de arte, do romance, do filme (Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira, é outro caso ético de arte contemporânea: a “realidade objetiva” está ali, mas o tom é de complexidade e perplexidade) não reside em seu compromisso com a realidade, com o coletivo ou com essa coisa monstruosa que o Walter Benjamin jovem defendeu: a objetividade extremada. Como Kundera já foi citado, melhor seguir com ele e lembrar que a ética da arte não está nem no compromisso com deus (qualquer deles), nem com a pátria, nem com o povo (nem com o partido ou com a causa), mas no compromisso com a herança mais radical da arte. Kundera não vê essa ética no centro de sua própria obra; nisso dele divirjo. Em última instância, porém, minha aposta é a dele: a ética da arte contemporânea está no seu compromisso com essa arte e com nada fora dela.

Teixeira Coelho é professor da ECA-USP e autor de Guerras Culturais, entre outros.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O NOVO MACHISMO

Hoje...
Do telhado, (sé é que se pode chamar assim estes pedaços de madeira podre que me cobrem) ainda há pouco, pude sentir a chuva pelas frestas...
Desenhei meio-sorriso.
Foi assim: primeiro eu acordei com o barulho do próprio estômago, e os pássaros passaram em revoada - os eucaliptos são sua diversão. O cheiro forte da mata, frio, ranger de tábuas... O vento trouxe a umidade de tão alto.
Depois: a torrencial tempestade de verão.
Estiquei a língua... sim, a água.
Apesar da pouca inteireza deste casebre perdido, da solidão dos lobos lá fora trincando os dentes na porta, (desejando a minha carne por companhia imediata) sinto a presença de algo maior, maior que tudo isso. Ouço na lembrança as músicas e o olhar de meu filho. E já não me sinto tão...
A tempestade trouxe ameixas amarelas pelo teto. Lembrei-me da infância em ensolarada escarpa... volto lá um dia.
Mas por hora, me concentro nos rostos dos seqüestradores...

Mais uma pancada!

E já não vejo coisa alguma...

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O NOVO MACHISMO

A mulher é um mutante. Não somente porque oscila, em hormônios e humores, mas porque é um dos poucos seres capazes de transfiguração sem jamais atingir uma forma definida. E para comprovar essa teoria nada mais efetivo que um passeio pelas ruas.
A constatação mais imediata é que tem mulher saindo pelo ladrão, em bares e cafés, vídeo-locadoras e cinemas. É um bichinho bonitinho a mulher, gracioso, mas depois de contemplar meia-dúzia de beldades vem o espanto inevitável – elas são todas iguais. Igualzinhas, idênticas, não só do cóccix ao pescoço, mas do calcanhar aos bulbos capilares.
Tudo nelas cintila a déja vu, a cópia, num desfile interminável de personalidades ofuscadas pela moda. É a beleza seriada, sendo a indústria nosso (admirável) mundo (novo), esse mundo de andróides sem memória e sem imperfeições, já que a tudo se corrige e se dá a forma desejada. A delas é esbelta, musculosa, glúteos em riste e peitinhos empinados. Os cabelos lisos, pelinhos dourados, seja a moça de ascendência afro ou nipônica, abdome rijo e algum canto bem visível da epiderme tatuado com o emblema de sua tribo, seja lá qual for. O mesmo sapatinho, a mesma calça jeans, os mesmos acessórios, tudo lindo, impecável e uniforme, conferindo ao portador o sentimento de que pertence a esse mundo.

INCLUSÃO E CERA QUENTE
Seria a indústria da moda o grande expoente da (também em moda) iniciativa de inclusão social? Porque, tal como se apresenta, tornou-se o elo universal de agregação e acolhimento, a ideologia contemporânea mais forte: ser igual a todo mundo para encobrir a solidão e o vazio sentimental. E o esforço em adequar-se ao modelo do momento é ainda mais patente nas mulheres, que ao custo de suor e bisturi (e alisamento, e tingimento, e cera quente) estão constantemente em mutação.
Sempre haverá um ideal, já que a postura interior é refletida na aparência. Sendo o Homem um esteta, e previsível que busque a expressão mais burilada. O que preocupa é o modelo acachapante da natureza do indivíduo, muitas vezes renegando o seu código genético e impelindo-o ao ridículo. Adequar-se é a exaltação da ditadura, é atestar que além do aprisionado está-se também muito distante de conhecer o que é autêntico.
Talvez o grande inimigo da mulher seja justamente seu maior profeta, a moda e os estilistas. Porque tanto a indústria quanto seus ícones pedem que ela se esvazie de características intrinsecamente femininas (os quadris largos, tão precisamente projetados para trazer ao mundo a cria; os pêlos pubianos, protetores de sua delicada intimidade; o sangramento, fim de um ciclo e purificação para o seguinte) em nome de algo essencialmente masculino – o lucro econômico.
Se pudesse eleger uma musa inspiradora contemporânea (não vale apelar para Sophia Loren ou Rita Hayworth), nomearia Regina Casé. Porque ela representa tudo quanto não se vê ruas afora. É feminina, seios fartos, quadris amplos, traseiro requebrante e estômago saliente (ela se alegra com a comida); cabelos lindos e sedosos, maio cabocla; dentes ranços, reluzentes, que iluminam o ambiente com o seios; muitas flores, colares e pulseiras. Uma verdadeira festa para os olhos e os ouvidos.
Há quem responda que ela é gorda, e não ousaria desmenti-lo. Ela é mesmo, e a despeito disso esbanja brilho e poesia, sem intenção de adequar-se ou ostentar uma “reforma” visual. Sua mutação é lenta e natural, como a de todo ser que vive, e resguarda o que há de belo, raro e primoroso em estar vivo – a personalidade. Mesmo que doa, mesmo que seja solitário, descobrir uma identidade é o único caminho para a tão sonhada liberdade.

KIKA SALVI é jornalista e escritora, autora de Kika, a estranha e Mulher à Moda Antiga (no prelo).



quinta-feira, 13 de setembro de 2007

VIAGEM . Conto

Salve, guerreiros. Hoje, com os dentes, consegui rasgar um pouco mais a mordaça de tecido roto que me fere a boca. Sinto que falta pouco para libertar os punhos também.
Ainda há água no pote ao lado, mas começo a me preocupar.
Enquanto a noite não chega, trazendo no encalço lobos carniceiros, lembro-me de uma passagem lida antes do golpe que aqui me aprisiona:


17
- brilhou o número. Entreguei minha senha. São cinco mil reais, ela disse, sem olhar para mim, preenchendo um formulário. Aquilo me pareceu muito seco. E o tempo? – eu quis saber, passando-lhe o cheque. Por esse preço, eles devem ganhar muito dinheiro. Tempo? – e ela sorriu, não exatamente com ironia. Talvez ela me achasse ingênuo. Uma pequena ansiedade – já havia alguém com a ficha na mão, esperando o 18 brilhar. Sempre sorrindo, a funcionária apontou o dedo para o fundo do corredor. É a última porta, ela disse. Eu me sinto idiota nesses momentos. No meio do caminho lembrei do imposto de renda – sem recibo, eu poderia descontar? Quase voltei, mas ela já atendia o 18. E ela não me falou do tempo, o dinheiro que estou pagando não é pouco. Imaginei o que dizer a algum porteiro que encontrasse ao abrir a porta, mas quando a porta se abriu senti uma vertigem breve, o clarão de luz, um baque nas pernas, a tontura. Abri os olhos e vivi o pânico da estranheza.
Uma tarde tranqüila naquela rua que, primeira impressão, me pareceu pequena demais, como uma fraude. É aqui mesmo? Tentei lembrar do que eu havia escrito na requisição e sorri nervoso, pensando naquele seriado imbecil, A Ilha da Fantasia. Eis o meu desejo: o tempo. Pois bem, parece que é isso – ou só isso. No momento seguinte senti uma brutal felicidade: sim, era naquela casa mesmo, cinqüenta anos antes. E senti poder; nada pode me tocar. Tudo é irremediável, e isso, pelo menos aqui, é muito bom. Avancei para o portão, com uma sem-cerimônia afinal grosseira, percebi, quando o menino largou o carrinho de matéria plástica no degrau e me olhou assustado: quem é esse homem barrigudo, ele parecia perguntar, e naqueles olhos arredios como que adivinhei cada fiapo de idéia. Avisar o pai, é o que ele queria, o que me deu a senha: O seu pai está? E sorri. E só então – o momento mais brutal da minha vida – percebi quem afinal era o menino e senti a densa hostilidade com que me olhava. A crianças são seres totalizantes, eu mesmo me desculpei. Ele não pode imaginar o que – o quê? Ele só pode imaginar. A hostilidade aparente se transformou numa concha de medo, mas não muito. Esticou o braço sem tirar os olhos dos meus olhos – foi a minha vez de sentir estranheza. A calça curta, os suspensórios, a camisa, a boina. A imagem de uma nitidez absurda, e, no entanto sem paz – um cromo vivo e tenso. Talvez ele me acusasse, se soubesse. Contornei a casa branca – tudo menor do que eu imaginara – e vi meu pai atrás de uma pequena cerca divisória, erguendo uma galinha pelas pernas, como um troféu. Sem camisa, costelas à mostra, a magreza de um branco queimado. Era quase como um retorno triunfal, eu sonhei durante dois passos, até receber nos olhos aqueles olhos de então – toda a sua fria beleza se concentrava neles – e a galinha silenciou abruptamente, na paz da cabeça para baixo. Ele esperava que eu falasse – talvez eu quisesse comprar a galinha. Ou. Ele aguardava a minha palavra: na imediata organização daquele cenário eu era o mais velho e o mais importante. O mais alto também, espantei-me. Ele foi baixando a galinha, que evitava o escândalo, e continuou a me olhar, à espera. Percebi que ele não teria jamais a menor idéia de quem era aquele senhor estranho diante dele. Mas eu sabia: em três semanas ele estaria morto. Desculpe-me, eu disse – e a voz saiu baixa. Ele continuava à espera. Eu me perdi – expliquei, erguendo levemente os braços, com um sorriso ambíguo. Ele sorriu agora, ainda sem entender perfeitamente, mas o dedo apontava uma saída lateral, como se aquilo não fosse um quintal fechado, mas um espaço aberto no campo. O menino, brinquedo de novo à mão, estava próximo agora, como para proteger o pai e também se proteger. Aquele não era o meu ligar. O tempo, eu pensei, lembrando a funcionária, e veio a vertigem. De volta pelo corredor, o homem com a senha 18 entregava o cheque – parecia animado. Não precisei perguntar – ela me estendeu um papel, finalmente me olhando nos olhos, o sorriso franco: O seu recibo, senhor.

CRIATOVÃO TEZZA é autor, entre outros, dos romances A Suavidade do Vento e O Fotógrafo.

A ESPIRAL DO YOUTUBE

Por Marcelo Tas

Como é possível alguém pagar US$ 1,65 bilhão por uma empresa criada por dois moleques com um ano de funcionamento ainda operando no vermelho? O milagre se torna crível quando a empresa em questão é o You Tube e o “alguém” que a comprou é o Google – o polvo eletrônico que aos 8 anos de vida representa 60% das buscas na Internet com um valor de mercado de dezenas de bilhões de dólares.
Mas a montanha de dinheiro no bolso não explica a loucura. A que estamos assistindo desta vez? A um novo terremoto que agora vai apavorar e transformar a indústria do audiovisual? A uma nova forma de ver TV? A uma nova modalidade para os sites de relacionamento na Internet? Digo “sim” para todas as interrogações anteriores. E sugiro que para entender o sucesso explosivo do You Tube deve-se começar pelo final.
O You Tube é, antes de tudo, um site de relacionamento. E o “culpado” pelo sucesso é o design do site: simples, divertido e espiralado.
Você entra, busca um assunto e pimba: fica grudado lá por horas. Claro, ‘horas’ é modo de dizer. Os vídeos no You Tube têm duração máxima de dez minutos (a não ser que você tenha uma conta especial). Mas numa busca por “Woody Allen”, encontrei tanta coisa que não conhecia que fiquei “horas” lá dentro. Surgem cenas sensacionais de filmes desconhecidos. Participações do baixinho de óculos em talk shows da época em que ele ainda ia a talk shows. E até mesmo uma palestra sobre nanotecnologia no MIT em que o cientista cita Allen para falar da velocidade dos espermatozóides humanos.

BIBLIOTECA DE BABEL


















Todos os dias, 100 milhões de vídeos são vistos no You Tube! Ibope de dar medo a qualquer rede poderosa de TV. Foi lá que o Brasil inteiro assistiu ao namoro à beira mar da Cicarelli. Foi lá que surgiu o fenômeno “Tapa na Pantera”, antes um curta metragem nacional tão premiado quanto desconhecido. A diferença é que esta audiência gigantesca não é sincrônica, como num jogo da seleção brasileira. É formada por meio de um boca a boca eletrônico na velocidade da luz. O que lhe confere mais vigor e credibilidade. As pessoas vão até o conteúdo. E não o contrário, como na TV tradicional. Sim, o You Tube é um site de relacionamentos. Não daqueles de virtual affairs. Mas do tipo que relaciona pessoas e assuntos. É como se você pudesse bisbilhotar cenas dos filmes ou programas de TV que seus “amigos” andam assistindo. E ao clicar nos “amigos”, você ainda pode ver as preferências dos “amigos” desses “amigos”. Ou seja, uma bola de neve. O tal design espiralado.
Num de seus contos, A Biblioteca de Babel, Jorge Luis Borges nos fala de uma escadaria em espiral num labirinto de informações. Lá estão todos os livros escritos pelo homem. E os que ainda não foram escritos. Livros com todas as páginas em branco, livros formados apenas por palavras que se iniciam pela letra A, livros escritos de trás para a frente, etc... A ironia é que muitos que ali entram para buscar algo importante para suas vidas, como o segredo dos alquimistas, acabam soterrados pelos zilhões de livros inúteis que lá também habitam.
Não existe descrição mais precisa para o You tube. Ou para a própria Internet. Mas não se iludam. O sucesso do Google, que acaba de comprar o You Tube, vêm da missão imposta no momento zero da criação da empresa: organizar toda informação do mundo e torná-la acessível e útil.
Cada palavra digitada no Google percorre pelo menos 600 computadores na Califórnia e coloca as respostas de volta na tela do seu computador, onde quer que você esteja, em apenas um quinto de segundo. Se os caras ainda não conseguiram organizar a Babel, parece que estão no caminho certo. Pelo menos até a próxima dupla de moleques mudar tudo de novo.

Marcelo Tas é jornalista, apresentador de Tv e autor do blog www.blogdotas.com.br

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Karine Alexandrino




"É cego. Ele é cego. Porque não jogo tudo isso rio!!!"







Kiss, Kiss, Kiss.
Codinome: Mulher Tombada!!!
Quem quiser ouvir Karine Alexandrino terá um ótima oportunidade ao conferir o espetáculo "Parasitas".
Esta e as outras trilhas que compõem o espetáculo entram de forma pontual, não como mera ilustração de cenas, mas, realmente, "para serem ouvidas", um signo em si, não isolado do restante da dramaturgia, mas com uma independência muito grande. Assim mesmo, a cena pára, e contempla-se a dramaturgia em suspensão afim da melhor apreciação da leitura sonora, somado ao "Espírito da Alemanha que Chora", concretizado em cena pela criação da atriz Nina Rosa Sá. Esta é a segunda edição da montagem. Na primeira, este refém que vos fala fez o trabalho de "preparação corporal" do elenco, utilizando-se de métodos samurais de condicionamento físico e psicológico.

Acompanhe a reportagem do Franco Caldas em:
Entrevista com o diretor momentos antes do ensaio geral.

PARASITAS
de Marius von Mayenburg
Direção de Henrique Saidel
06 a 16 de setembro
quinta a domingo 20h00
teatro cleon jacques
(parque são lourenço)
ingresso: 01kg de alimento não -perecível

Parque São Lourenço - Curitiba.

ENTRE O BEIJO E O MURRO





Leslie Fiedler tratou a crítica da cultura com o furor de um profeta intransigente, turbulento e alucinado.
Por Sérgio Augusto de Andrade - Março 2003

Aberrações: diante da obra de Leslie Fiedler foram poucos os que conseguiram disfarçar seu desconforto.

Quando eu tentei descobrir o que Leslie Fiedler andava escrevendo ou pensando, num momento de inocente divagação no começo do mês passado, eu nunca imaginei que ia acabar confirmando que nem todo mundo pensa ou escreve para sempre: Leslie Fiedler tinha acabado de morrer.
A morte não precisa ser só um memorial: ela pode também ser um memorando. E como eu só acredito ou em preconceitos ou no acaso, achei que talvez fosse um bom momento para tomar um óbito por um lembrete, e – certamente por mera afeição pela época em que abri pela primeira vez Love e Death in the American Novel – voltar a ler Leslie Fiedler.
É uma experiência e tanto.
Com sua fixação ao mesmo tempo romântica e vigorosa pelas qualidades usualmente subversivas do periférico, Leslie Fiedler foi um crítico que sempre preferiu comentar a arte e a literatura a partir das margens, nunca do centro: acreditar que a análise da imaginação deveria ser uma aventura tão arriscada e perigosa quanto qualquer sonho ou qualquer pesadelo configurava a mais teimosa de suas convicções e era expressa num estilo cuja veemência cortejava o escândalo com uma alegria quase obscena.
As reações que provocava sempre foram extremas: se William Faulkner adorava visitá-lo em sua casa em Montana para ler trechos de Luz em Agosto, Saul Bellow nunca hesitou em classificar Love e Death in American Novel como o pior livro já escrito sobre literatura americana. As reações do próprio Leslie Fiedler nunca foram particularmente serenas: ele sempre repetiu que, caso tivesse conhecido Ezra Pound, iria antes de tudo beijar suas faces – para logo em seguida esmurrá-lo. Era uma atitude razoavelmente previsível – a crítica de Leslie Fiedler sempre esteve muito próxima ou de um beijo ou de um murro. Por isso, se tivesse conhecido Ezra Pound, Leslie Fiedler só poderia mesmo ter reagido com dois únicos gestos possíveis não só para seu temperamento, mas especialmente para sua inteligência. Poucas vezes a literatura foi tratada como uma questão tão visceral.
Love & Death in American Novel é um livro extraordinariamente influente que foi publicado em 1960 e cuja tese principal, em certa medida, havia sido adiantada por um ensaio sobre Hucleberry Finn que Leslie Fiedler havia escrito 12 anos antes e no qual sustentava, com uma candura perturbadora, que a relação inter-racial entre Hucleberry Finn e Tom Sawyer era marcada por um componente muito mais erótico até do que se supunha em certos círculos mais – digamos – progressistas. Segundo Leslie Fiedler, a amizade entre os dois era uma afeição alimentada por uma espécie de terror que, em última instância, acabava definindo os fundamentos da própria literatura americana – e que consistiam, basicamente, numa essencial incapacidade para lidar com a sexualidade adulta (o que explicava por que a maior parte das personagens masculinas nos romances americanos sempre permanecia num estado de infantilidade incipiente e acabava sempre fugindo, de uma forma simbólica ou literal, para a floresta ou o mar). Criada à sombra de uma figura tão sintomática como Rip Van Winkle, a literatura americana só podia sublimar a intensidade de sua fobia por sexo a partir da elaboração quase desesperada de uma obsessão patológica com a morte – o que justificava, por sua vez, toda dinâmica de dominação da poderosa tradição gótica sobre sua imaginação e suas fantasias. A vinculação clássica entre a expressão do impulso erótico e a pulsão de morte era naturalmente um lugar comum da teoria freudiana; o que tornava sua aplicação em Love & Death in the American Novel tão deliciosa era a radical disposição com que Leslie Fiedler revelava tudo o que havia de ferocidade, de vertigem e de arrebatamento carnal nos grandes clássicos da literatura americana – cujas expressões mais consagradas eram tidas em geral como a mais heróica e saudável das leituras abertamente inspirado em D. H. Lawrence, embora muito mais atento que Lawrence à importância do negro como mito e arquétipo, Love & Death in the American Novel exibia o que havia de mais triunfalmente doentio em cada clássico – e expunha a impecável galeria das grandes figuras do romance americano como um grupo não exatamente impermeável ao lirismo mais refinado das relações homoeróticas. Confrontados com as lições de Leslie fiedler, pouquíssimos conseguiram disfarçar seu desconforto. Em suas páginas, a miscigenação surgia como o verdadeiro tema de O Último dos Moicanos; a sedução e o sadismo como os dois grandes motivos de A Cabana do Pai Tomás; a necrofilia como o impulso básico de Henry James; a trama de Moby Dick era definida não como uma caça à baleia mas como uma história de amor – e a de Henderson, o Rei da Chuva, de Saul Bellow, como uma versão homossexual da fábula de Tarzan. De Charles Brockden Brown e Edgar Allan Poe a Ernest Hemingway, a grande obsessão da literatura americana sempre consistiu na busca de um substituto inocente para o adultério, o casamento e o incesto: para Leslie Fiedler, o que o escritor americano mais temia era simplesmente a maturidade.
Por celebrar um aspecto da literatura americana que subvertia diretamente as convenções mais arraigadas da cultura dos Estados Unidos, Love & Death in American Novel conquistou uma curiosa notoriedade pop; Em Exposed, por exemplo, um filme merecidamente esquecido de James Toback, uma edição do ensaio aparece nas mãos de Nastassja Kinski durante uma aula de literatura enquanto uma das frases do livro – evidentemente longe de ser a melhor – é citada por seu professor com a displicência complacente de quem parece transmitir uma senha mágica. Como Norman O. Brown, cuja Vida Contra Morte conheceu um destino análogo, Leslie Fiedler logo se tornou um símbolo hip que passou a cool que passou a pós-moderno – termo, aliás, que muitos acreditam, baseados no dicionário de Oxford, que tenha sido inventado por ele. Uma multidão infindável de ensaístas que teimava em transformar a união entre a cultura erudita e a popular numa trincheira pessoal foi irremediavelmente influenciada por seu estilo – cuja inflexão pode ser identificada até nos balbucios histéricos de uma acadêmica menor e tagarela como Camille Paglia. Fiel á sua paixão moral pelo pop, Leslie Fiedler nunca se importou muito em cultivar uma imagem estrategicamente avessa à consagração oficial: embora tenha sido um dos mais discutidos e homenageados críticos da segunda metade do século passado, ele sempre fez questão de manter seu currículo disponível na Internet – e numa de suas aparições públicas mais célebres deve ter se divertido muito ao ser visto durante um concerto de Bob Dylan ao lado de Allen Guinsberg e O. J. Simpson. Mas até esse flerte quase protocolar com a tradição pop não deixava de se revelar inevitavelmente problemático: talvez Leslie Fiedler nunca tenha aceitado com muita satisfação o fato de que seu livro mais vendido tenha sido Freaks, seu estudo sobre a mitologia das aberrações – um ensaio cuja popularidade possivelmente se deva à combinação elementar do prestígio de seu nome com a série bizarra de fotos que ilustravam o livro. Mas no fim das contas, como um venerável e desafortunado mandarim, é mais que provável que o grande acontecimento da última fase de sua vida – uma tragédia cuja era menção me arrepia – tenha sido o desastroso incêndio de sua biblioteca de mais de cinco mil livros (incêndio que incinerou, entre outros tesouros, seu exemplar da primeira edição de Ulisses, que Leslie Fiedler mantinha com previsível fervor).
Suas fórmulas mais inesquecíveis são numerosas demais para serem catalogadas; o importante é que Leslie Fiedler escreveu com uma eloqüência ensandecida que tornava sua crítica veemente como um uivo, urgente como uma descarga elétrica e excitante como o verão. Ostentando até o fim seu judaísmo como uma inflamada qualidade retórica, Leslie Fiedler tratou a crítica da cultura com o furor de um profeta intransigente, turbulento e alucinado.
Assim que concluiu Moby Dick, Herman Melville enviou uma carta para Nathaniel Hawthorne comentando como se sentia. “Escrevi um livro malvado”, ele anotou, “mas me sinto puro como um cordeiro”. Deve ter sido a mesma sensação de Leslie Fiedler quando terminou de escrever Love & Death in American Novel.



segunda-feira, 10 de setembro de 2007

A ARTE DE ESQUECER . Ensaio

Salve, guerreiros.
Numa de minhas últimas conversas com meu amigo Gustaveaux Dias, (exímio pintor e intelectual de man cheya), me vi um tanto decepcionado com a atitude de artistas quando beiram a chamada "crise da arte". Na sua grande maioria, todos voltam ao início do processo, impedindo-se de dar o "passo seguinte, á frente e avant", atitude esta possível somente apartir de um conhecimento prévio e máxima clareza sobre o processo histórico artístico.
O que fazer quando chegar á náusea de seu limite, depois de passar pelas vanguardas e deparar-se com o famoso "tudo já foi feito"?
Apontávamos uma tentativa:
(que será apresentada em breve ao mundo!)

Nesse intermezzo:


A ARTE DE ESQUEÇER
Por Charles Feitosa

O dicionário define a ‘memória’ como uma faculdade de reter conhecimentos ou experiências passadas, e o ‘esquecimento’, por oposição, como a incapacidade de reter as informações, como um certo ‘deixar cair fora’ do controle (esquecer’ deriva-se do latim ‘cadere’, que quer dizer ‘cair’). Por causa dessa ‘controlabilidade’, costumamos valorizar mais a rememoração e suas técnicas do que o esquecimento e seus lapsos.
Entretanto, a memória, vista mais de perto, não é só atividade. Não é por acaso que falamos dela como alguém que nos trai, como se fosse uma esposa amada, mas infiel, sobre a qual lamentamos não ter tanto poder. Da mesma maneira que nossa capacidade de controle sobre a memória é limitada, talvez haja inversamente a possibilidade de que o esquecer possa ser ativo.
Infelizmente não temos notícia ainda do desenvolvimento de nenhuma ‘amnemo-técnica’, quer dizer, uma arte da amnésia, nem como uma forma de aprender a bem viver, nem como uma técnica de auxílio à ciência e ao conhecimento. Uma agenda do esquecimento seria um empreendimento paradoxal, pois o esquecimento não permite listas, planos ou cronogramas. Por que então querer esquecer?


Persistência da Memória - S. Dali


A vantagem de olhar para o passado é a oportunidade de compreender e experimentar esse passado como ‘nosso’. Em geral tendemos a olhar para a história como um processo onde não temos nenhuma participação. É a mesma coisa que acontece quando dizemos que ‘estamos presos em um engarrafamento’. Essa frase tão banal e cotidiana trata o engarrafamento como um processo independente da nossa vontade, como uma pedra que se instala no meio de nosso caminho para casa. Do ponto de vista da filosofia seria muito mais coerente ligar para a família e dizer que vamos chegar atrasados no jantar porque estamos muito ocupados produzindo um engarrafamento junto com a ‘maior galera’.

Desejo e Ação

Olhar para o passado ajuda a lembrar que somos também a nossa história. Isso só é ruim quando é feito de forma excessiva. É preciso desconfiar quando a nostalgia vira moda. Supervalorizar a memória pode, às vezes, significar falta de perspectivas para o futuro. Para que o futuro se realize é preciso às vezes esquecer o passado. O esquecimento é condição de possibilidade de tudo que é grande, saudável e nobre no homem.
Nas suas Considerações Extemporâneas (1874), Nietzsche convida-nos a imaginar um homem tomado por uma paixão violenta por uma mulher ou por uma grande idéia. Como se modifica o seu mundo! Não apenas todas as suas avaliações se alteram, como a própria capacidade de valorar fica temporariamente suspensa: ‘Torna-se ingrato contra o passado, cego para os perigos, surdo às advertências, um pequeno redemoinho vivo em um mar sereno de noite e de esquecimento’.
















A Desintegração da Persistência da Memória - S. Dali

Para Nietzsche, este estado de esquecimento sereno da história produz não apenas ações injustas, mas muito mais vezes as corretas: ‘Nenhum artista teria realizado um quadro, nenhum general teria ganhado uma batalha, nenhum povo teria conquistado sua liberdade sem que tivessem antes desejado isso de um modo não-histórico.’
Saber selecionar o que deve ser esquecido para poder se concentrar no que pode ser realizado, eis o segredo das grandes ações humanas. Não é uma tarefa fácil, os únicos mestres de que dispomos, segundo Nietzsche, são as crianças e os animais, seres capazes de brincar’ entre as cercas do passado e do futuro, em uma serena cegueira’.
Nossa época pode estar sofrendo de um excesso de sentido histórico, de um exercício desmedido da memória. Um homem que nunca esquecesse ficaria doente, enfraquecido, desesperado de morte. Esquecer não quer dizer simplesmente apagar da mente e da vista, mas ter a força de recriar a memória, de reinventá-la, libertando-se das interpretações oficiais e canônicas e partindo para a criação. A memória pode até ajudar a conservar a vida, mas só o esquecimento pode contribuir para a sua regeneração.

CHARLES FEITOSA é doutor em filosofia pela Universidade de Freiburg I.B. (Alemanha), professor da UniRio e autor de Explicando a Filosofia com Arte (Ediouro).

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

NA BEIRADA DA CAMA . Conto

Ok, ok. Mais um conto para esses filhos bem criados, de infância colorida na chácara dos avós, que não vivem sem ficção. Eu também fui um desses, assumo. As colinas entre a neblina matutina ficaram encravados na memória tal qual o cheiro do café e o riso primaveril das primas.

Mas agora...
Só estrondos e enxofre
Cuidado
Abaixa



Por Eduardo Pimenta

Na beirada da cama, um infarto fulminante. No exato momento em que mamãe morreu, estava eu copulando com dois belos espécimes africanos, num desses bangalôs de turistas. Via satélite a notícia. Um desconforto, o sol entrando pelas frestas, os corpos tépidos estendidos num xis pelo chão. Alheios. A vida é mesmo sobre sexo e morte. Hoje tenho mais um dia de trabalho duro pela frente. Nenhum tesão especial para levantar da cama. Seria um pé após o outro até o banheiro, o espelho no corredor revelando em passant as carnes opacas, para só então abrir a torneira e tentar desencalacrar da boca aquele que é o mais denso extrato do cabo de guarda-chuva, produto do porre de Pernod com soda que tomei no dia anterior. O cheiro daquilo.

Toquemos adiante.
Ainda estou sentado na cama, o que faz uma grande diferença. Em minutos terei deglutido uma torrada com geléia no caminho para o estacionamento, não sem antes dar dois bons dias. Um para a vizinha que quer dar para mim e eu não quero comer e outro para a vizinha que eu quero comer e não quer dar para mim. Enfim, tenho nojo do meu automóvel. Sinto ódio por ele. No meu conceito, significo menos que ele na ordem geral das coisas. No conceito ele, idem. É girar a chave no contato e lembrar que esqueci algo em cima da mesa. Às vezes volto para buscar. E então estou de volta, de onde nunca saí. Vou aos betabloqueadores para a pressão arterial, dou uma passada d’olhos nos headlines da TV e sou acometido por uma libido meio mórbida. Fico tesudo quando estou de ressaca. Reatar o nó da gravata, checar as ramelas renitentes e pegar a porra do crachá em cima da mesa. Sou uma pessoa de crachá. Esse é para mim um excelente motivo para ensebar ao máximo antes de sair de casa.
O crachá serve para controlar meu trânsito no trabalho. Eles sabem tudo. Quantas vezes entrei e saí do prédio. Quanta vezes desci à lanchonete. Quantas vezes tive vontade de assassinar alguém e não o fiz porque, com um crachá desses, me falta um álibi e sobram testemunhas de acusação. É nesse ambiente gostoso de ampla liberdade em que trabalho. Sou pago para reproduzir versões atraentes de fatos cotidianos. Não posso exagerar no “atraentes”, porque aí iriam me chamar de escritor, o que é péssimo do ponto de vista profissional. Hemingway se fodeu bastante com essa confusão que, talvez, fosse boa idéia me alongar na cama por mais alguns minutos. Pensar no trânsito dá arrepios. Tenho pavor de velhinhas amarfanhadas com xale azul, escondidas atrás do volante de um Corsa, como a que vi ontem.
Estou numa fase em que ao acordar penso invariável e fixamente na cachaça depois do serviço. É o meu graal, mau alento, meu leitmotiv. Convivo desde os 12 anos com a irrefreável vontade de abrir uma lata de skol pela manhã. Bem, se fosse enumerar esses pequenos delitos morais que cometo sem perceber levaria uma vida inteira. Uma vida. Quando vai chegando lá pelas quatro da tarde começo a sentir cheiro de provolone á milanesa. É um dia de trabalho duro o que terei pela frente. Rotina, apenas. Sem comentários. E depois, como faço sempre, chegarei em casa trôpego, ansiarei por um último cigarro e dormirei com a televisão ligada. Último cigarro. Horas de sonho intranqüilos. Ao despertar, mais uma vez não saberei bem porque tenho de levantar. Se é que tenho.
Na beirada da cama, um infarto fulminante.

EDUARDO PIMENTA é jornalista e escritor, autor de O Homem que Não Gostava de Beijos.


Tenho publicado cada vez mais, e com maior freqüência, então... Um grande abraço (ou, logo que eu consiga desatar as mãos, heheh, aarrgghh!!!)

SAMUEL



Salve guerreiros.

Pra quem não pôde assistir ao espetáculo "Samuel", realizado no início do ano, no Espaço Cultural FALEC (Mateus Leme - 990), deixo aqui algumas fotos de espetáculo realizado com o Grupo Processo. Direção de Adriano Esturilho, produção de Carolina Maia.

No elenco, este refém que voz fala, e Hermison Nogueira (ator, professor, cantor erudito, butô e... adora comida, até dobradinha, "o cara não é fraco, minha gente", heheh). Cenário do Alfredo (grande cara).

Então, se tudo der certo, logo estaremos de volta com este espetáculo, o qual compõe-se de cenas curtas de Samuel Beckett (grandioso), e mais algumas cenas (também curtas) criadas pela equipe, baseadas no mesmo S. Beckett.

Dica, antes que a bomba exploda: No youtube pode-se encontrar peças de S. Beckett filmadas exclusivamente em formato pra vídeo, com ótimos atores, numasérie intitulada "Beckett on Film". Vale a pena dar uma espiada.


Um grande abraço deste amordaçado, suando frio.

Não desistam: em algum momento, a corda cede.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

CARPETE . Conto


RICARDO LÍSIAS

Para Joaci Furtado

Minha mulher me varreu para debaixo do tapete de um jeito tão abrupto que eu acabei só com a roupa do corpo. Não pude trazer sequer a minha escova de dente. Ela não teria utilidade aqui embaixo mesmo, mas ao menos me deixaria com uma sensação de limpeza. Além disso, eu poderia usá-la como uma espécie de pequena vassoura e retiraria a poeira que me obriga a coçar o nariz quase o tempo inteiro. Eu também poderia usa a escova para, com toda delicadeza, espetar a barriga do nosso cachorro e expulsá-lo de cima de mim. Logo que minha mulher me varreu para cá, ele resolveu deitar-se no carpete com as pernas apoiadas nos meus ombros. Como sempre nos demos bem (o que fazia minha mulher quase morrer de ciúmes), resolvi deixá-lo descansar em paz. Alguns dias depois, comecei a me incomodar com o peso dele: acho que minha mulher parou de comprar ração e deve estar alimentando-o com arroz e feijão mesmo. Qualquer pessoa um pouco mais responsável sabe que, fazendo isso, o animal vai terminar obeso e com problema nos dentes e no estômago. Agora que eu já fui varrido mesmo, que diferença vai fazer para ela se o cachorro engordar até quase não conseguir ficar em pé?

*

Resolvi o problema virando-me assim que o cachorro se deitava no meu pescoço. Evidentemente, ele esperava um pouco e insistia, mas aí eu mexia outra vez e ele acabava indo atrás de um lugar mais tranqüilo para dormir. Só que de alguns dias para cá, mais gordo do que nunca, ele resolveu dormir deitado na minha barriga. Escolado, assim que ameaço me virar, ele se levanta e move habilmente as patas para continuar em cima do tapete e, conseqüentemente, de mim. Se eu tivesse conseguido trazer comigo a escova de dente, poderia espetá-lo. Acho que já não sinto por ele o mesmo que antes.

*

Se bem que eu posso estar sendo injusto: sempre que o cachorro está deitado no tapete, minha mulher passa ao nosso lado em direção à porta e, assim, não piso em cima de mim. Contra o salto dos sapatos dela, nem minha escova de dente teria alguma chance. Outro dia, bem na hora em que o cachorro estava comendo (arroz e feijão, com certeza, pois agora que me varreu para cá minha mulher não deve mais estar comprando ração), ela sem a menor cerimônia pisou nas minhas pernas e quase acertou a ferida. A propósito, já estou começando a ficar desconfiado: por que ela está usando salto alto tantas vezes?

*

Claro, minha mulher deve estar passando todas as noites fora atrás de um substituto para mim. Ela fica ótima de salto alto, mais simpática e bem humorada. Eu nem sei como ela ainda não arrumou outro. Só pode ser por causa do cachorro: que homem daria confiança para uma mulher que nem sequer se preocupa em comprar ração ara um animal tão fiel e amoroso? Com arroz e feijão, ele acaba ficando obeso e oferece um espetáculo horrível para as visitas.

*

Por falar nisso, ontem alguém veio nos visitar. Bateu na porta, gritou alguma coisa e empurrou um papel por baixo da porta. Fiquei morrendo de curiosidade, mas não alcancei o bilhete daqui. O cachorro, claro, não fez o menor esforço para me ajudar. Nossa relação definitivamente já não é a mesma. Acho que era alguém importante, pois minha mulher passou praticamente correndo pelo tapete e foi telefonar da extensão do quarto. Continua boba: do jeito que o tapete é grosso, quase não consigo ouvi r nada daqui debaixo. Nem mesmo quando ela grita praticamente do meu lado. Percebo, é lógico, que ela está falando alguma coisa, mas não consigo entender nada. O contrário, acho, também é verdadeiro: duvido muito que tanto ela quanto o cachorro consigam me ouvir. Já pedi mais de dez vezes a minha escova de dente, mas tudo que consegui foi um prato de arroz com feijão, que aliás tive de dar um jeito de comer sem os talheres, pis ela me varreu para baixo do tapete de um jeito tão abrupto que não tive tempo nem mesmo de pegar uma colher.

RICARDO LÍSIAS é autor de Duas Praças, entre outros.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

O LEGADO . Conto


Era ele um homem de princípios. Barganhava, é verdade, com vilezas de pouca monta, coisa rala, miudezas. Mas houve dia em que se fez roxo o céu e neste dia o homem olhou par o estribo, deu de comer ao cavalo e duvidou da sorte. Três dias depois morreu de um galope malogrado do animal, num certame eqüestre já tradicional na região.
Deixou uma casa, duas fazendas e algum dinheiro em espécie, que ele não se fiava em modernidades. Filhos, nenhum. Cães, o inventário deu conta de seis, assim divididos: o de casa, o do campo da fazenda maior, o do pasto da fazendo menor, o que dormia ao relento, os que rogaram estadia e ficaram. Tinha mulher, por registro, mas nunca que se tenha visto por costume.
Deu no jornal o infortúnio e o povo até comentou por um ou dois dias na roda do bar o destino do homem. Depois, o sol tornou a se pôr e a arroba do boi subiu, e a terra foi arada com ancinho, e acabou-se o estoque de doce de Cosme-e-Damião no bar do seu Onofre.
Um dia, a viúva dada por sumida, veio ter com o escrivão. Queria dar conta de saber o que era feito dos animais da casa. E ninguém sabia da vida doméstica do lar alheio, que ela fosse falar com o caseiro. Foi bater em porta do empregado, mas era estranho, o cão da casa se tinha ido. Mas que lá ficasse um dia ou dois que iam procurar na lavoura.
No primeiro dia, desabaram, águas e ela ficou só e o caseiro cuidou de trancar com ferrolhos as janelas. No segundo dia, o café quente já não resolvia o frio do corpo. O cachorro não apareceu e nem o homem prometeu continuara procura. Na dúvida do que fazer, ela apoiou no queixo a mão, pensou por um fiapo de tempo, e fez chamar os empregados, que não era possível ter sumido o bicho assim, sem mais razão do que prestava. Ampliaram as buscas. Veio gente ver que sanha era aquela da viúva pelo cachorro, que havia de ter algo de errado.
O caso foi parar na prefeitura. Ela exigia o quarto de passo que fosse, mas queria o bicho e ao custo que fosse. Foi feita a vontade da dona e lá correu o vento de uns moçoilos dos arredores, que fossem pra dentro das terras e achassem o animal. Que, se voltassem sem ele, havia de ser dado o assunto por encerrado.
Começaram a pensar em roubo. Se era lá o animal de fino pêlo para justificar a hipótese foi causa que o acessor da prefeitura botou no relatório, a perguntar quando chegasse a hora. Mas não era. De característico, se soube que o bicho tinha uma das patas mais curta, que tinha era sido picado por uma peçonha em tempos idos. Cataram uns quatro ou cinco de estirpe similar nas redondezas, mas eras as marcas certas nos cachorros errados.
A privacidade do mistério era protegida por coisa que a mulher fazia não declarada. Todas as coisas, abrigadas na casa, não entravam na alma de ninguém. A viúva deixava rastros de umas coragens quietas. E o que tinha o povo a ver com aquela batalha íntima era coisa que pretendia ignorar.
Chegou de motorista um homem lá da governança do estado. A primeira providência do doutor foi uma oferta de uns trocados pela paga da solução. Deu conta de se fazer retirar depois de tanta pompa e circunstância, que eles desculpassem, que o Governador mandava os cumprimentos. Foi-se embora sem deixar o dinheiro prometido. Que os cofre públicos andavam à míngua.
Nunca se achou o bicho. E ela nunca que saiu de dentro da propriedade, cuidando de se entender com o silêncio. O homem, que morreu debaixo de umas cores plúmbeas de céu, tinha dado cabo do animal, com um engaste de pistola. Era que o cão lhe tinha amado. Mas sentimento era coisa pra enganar os trouxas, que o importante na vida era o trabalho, o dinheiro e a segurança. Morreu no galope incerto de um cavalo chucro. Que ele não se fiava na lei dos justos.

LÍVIA SGANZERLA JAPPE é jornalista.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

BABEL BABILÔNIA . Conto

Conto de Nelson de Oliveira

Três são as subespécies humanas que convivem equilibradamente em Babel Babilônia: os dramaturgos dos edifícios, os nutricionistas das ruas e os cartógrafos dos túneis. Conseqüentemente três são os alvoreceres e os entardeceres dessa cidade-cilada: o luminoso (dos dramaturgos), o fuliginoso (dos nutricionistas) e o obscuro (dos cartógrafos). Para o viajante pouco habituado aos costumes do Ocidente essas três subespécies parecerão demasiado excêntricas. Nos edifícios os dramaturgos cultivam cercas de arame farpado em marquises de isopor e fibra de vidro. Nas ruas os nutricionistas adestram samambaias assassinas em picadeiros cozinhados em praças públicas. Nos túneis os cartógrafos hipnotizam alicerces de aço e fundações de concreto durante sessões espíritas de longa gestação. Lá todos os dias é 11 de setembro.
Reza a lenda que Teseu, ao escapar do labirinto (outra maneira de se referir a Babel Babilônia), trazia os olhos transtornados e, nas orelhas, garfos em vez de brincos. Sancho Pança, que o acompanhara através dos três círculos divinos – o paraíso dos dramaturgos, o purgatório dos nutricionistas e o inferno dos cartógrafos -, ladrava para as tevês e os vaga-lumes. E não dizia palavra, pois acreditava que se abrisse a boca parte das estrelas e dos planetas despencaria da abóbada celeste. Ao serem questionados durante o talk show de maior audiência da madrugada, Teseu e Sancho foram unânimes: das três subespécies, a dos cartógrafos era a mais irascível. Dos três planos, o dos túneis era o mais abençoado. Dos três hábitos alimentares – o vegetariano (dos dramaturgos), o macrobiótico (dos nutricionistas) e o antropofágico (dos cartógrafos) -, o terceiro era o mais sedutor.
Quem pensa que na Tenda dos Milagres (outra maneira de se referir a Babel Babilônia) os dramaturgos dão as caras não sabe se esquivar da farsa tragicômica dos espelhos. A verdade está o reflexo: lá quem dá as cartas são os cartógrafos. Afinal, foram eles que expulsaram a alcatéia de dramaturgos para o alto. São eles que catequizam o rebanho de nutricionistas para a primeira comunhão do abate anual. Nas grutas agridoces de Gadget (outra maneira de se referir a Babel Babilônia), os cartógrafos de pele azul deglutem os nutricionistas de olhos vermelhos em rituais relâmpagos transmitidos via Embratel pelos dramaturgos de cabelo verde. Em Babel Babilônia há várias cidades dentro da mesma cidade, vários homens dentro do mesmo homem. Lá as torres gêmeas, derrubadas e reconstruídas meia dúzia de vezes, continuam a cair e ninguém acredita no livre-arbítrio.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Impossível


















Impossível . impossível
Não é possível que se possa amar aqui por estas paragens
Nestes lados dos trópicos . onde o mar é mais azul . as perdas também são imensas
No país do samba . do carnaval . da Verdade Tropical . do axé e afoxé . dos filhos de Ghandi . dos pampas ao Acre
Impossível . impossível
Outra
Não é possível que possa haver mais paz dentro de mim.
Chão nada seguro . Hastes nada fixas
Minhas asas . antes tão grandes (lembra?) . agora molhadas . molhadas
Não me venha com meias-palavras
Tenho medo do desconhecido . Percebo quando o ar é mais pesado . Percebe

Deixa eu rir da minha cara só um pouco .  Será demais .  Deixa eu escrever o que eu quiser sem medo
Como sempre tive vontade . Só um pouco
Contigo não quero mais sonhar
"verdade sobre mim"
Meu lado oposto de tudo o que me põe de joelhos . do ciclo ter . perder
E querer não querer mais pra não tornar perder

Impossível
Que esta noite não te traga novamente . pra que eu não acorde com este gosto na boca . este gosto amargo de lembrança . rosto já se apagando
Quero e não tenho
God . I Love.

Onde
Onde nossas vidas se podem tocar novamente
Onde

Superatento caminho . asas molhadas - lembra . a ponto de te ver fantasma onde já não estás
Ou talvez nunca esteve
Por longas horas as lágrimas limpam o caminha à frente de minhas botas

Quero
Já não posso

Lírico demais?
Foda-se!

sábado, 18 de agosto de 2007

Ímpar



Estranho mas seguro,
porque o exótico é belo
mas
irrelevante



.



quinta-feira, 16 de agosto de 2007

SALE . FLESH


QUEM QUER UM POUCO MAIS DE MIM
QUEM QUER UM POUCO MAIS DE MIM
PODEM VIR, REALMENTE PODEM VIR
ARRANCAR UM POUCO DO QUE AINDA SOBRA
E QUE SEMPRE SE REGENERA
COMO Prometeu EU AINDA TENHO MUITO MAIS
MUITO MAIS A SER TIRADO
Vamos . passe a faca aqui por debaixo da costela . vamos
Com suas palavras ofensivas
Seus valores medíocres
Vamos
Sei que podes ver um naco de carne ainda . por detrás da escápula
Que pode te servir depois de me cuspir
de um jeito diferente e criativo a face luminosa
Toque os beiços fétidos em minha carne perfumada
Dia terrível que nunca acaba
Este é meu melhor amigo, céu carregado de faíscas
NUNCA
REALMENTE PODEM VIR
EU NÃO MORRO

Sou concreto-frio-noturno . pronto para ser pisado
Faça bom uso de seu salto agulha
Minhas costelas crispam . estalam
Para que todos ouçam
Este é o número dois
O refém número dois

CONCLUÍDO
NÃO MORRO

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Há amor ao sul

Não tenho . não tenho . não tenho . não tenho . não tenho
Não adianta . Nada
É simples . Pare de me pedir . Não dá
E depois que eu sair . não quero ver nunca . nem rastro . nem cheiro . nem as porcelanas velhas compradas domingo de manhã . em um pingo de chuva daquele verão passado a 120 por hora
Nada . nada
Por que sofrer é um outro meio de se desprender . e o que eu quero agora é só este vento minuano a me surrar as faces . E como quero
Aqui  . Os arrozais estendem-se ao longe e o perfume dos seios é inebriante
Elas desfilam por entre os campos e conduzem o sul como se flutuassem . estes pés alvorescidos
Pinhões derramam-se pelo caminho . fartura imensa
As mechas douradas é que ceifam o campo aberto
Nada mais da chuvitiba sem sal . Estes paraleleduropípedos são um arramedo de chão . trapo pueril perto do que traz de sonho a terra ao leste do planalto
A vida . está em outro lugar
E eu me atiro na direção dos chalés nórdicos catarinenses

Viva o sonho . de plantações de arroz e de fala cantada

domingo, 22 de abril de 2007

Estréia

Pulsa o sangue

Os olhos firmam

Eu ouço e vejo em câmera lenta o trovão e o lampejo por trás da cortina de fumaça que está á minha volta e entre nós
Meio sorriso se desenha junto com a ereção
PAUSE . EXPECTTIVE
Vomito o meu delírio fugaz e profano . estribucho palavras enlouquecidas para cima de ti . reflexo do turbilhão incontrolável que há dentro
Depois te desenbaraço imediatamente o sorriso bobo inicial e vejo-te então . as mãos frias . apaixonar-se.
tornozelos frios
Sou concreto frio noturno, pronto para ser pisado
Observo de maneira crua, a violência de esperas amedrontadas
Nu . deixo-me ser rabiscado . com ponta fina, a lâmina é mais profunda. E você, com o seu querer, querendo me saber . mais e mais
Te carrego pra debaixo da língua. E enquanto você vira os olhos e aperta os lábios frios . eu agradeço os aplausos
E me adentro sozinho ao camarim . guardando sob a pele endurecida as sobras . a palpitar na garganata um pouco de tudo

Suspiro

Sozinho

A deixar que tudo vire o nada absoluto
Perdido n'alguma memória que me retorne e que provavelmente eu não acredite
E sozinho
Meio que sem querer
Desenho um torto-sorriso

Quieto

Discreto

Pronto para a próxima