segunda-feira, 26 de julho de 2010
Quando a Violência nos Espelha um Self Ominoso
Encenado na Itália a 23 de outubro de 2008, sob a direção de Elio
Capitani, ou em várias outras partes do mundo desde a morte violenta e
prematura de sua autora – Sarah Kane, Blasted vêm sendo considerada a
mais polêmica obra teatral contemporânea.
O mundo, em Blasted, colapsa em uma sala de hotel.
Foi o momento certo para colocar Blasted no palco. Para mim, para fora
do ar em nosso país e para a coisa que conta mais: os atores ideais.
Elio de Capitani.
Eu não gosto de filmes violentos, e eu não gosto de peças violentas e
a razão é que eu não gosto de violência. Sarah Kane.
Não se pode morrer e voltar. Isso não é morrer, é desmaiar. Quando
você morre, é o fim. Sarah Kane (Blasted).
Temos de ver as coisas de que já sabemos que aconteceria, e temos de
ser capazes de entendê-las. Sarah Kane.
Que tu não prove a dor, que tu não saiba de nada que você não precise
saber. Sarah Kane (Blasted).
Sarah esperava muito no mundo e muito mais na vida, talvez mais do que
mereça este mundo e esta vida. Juan Mayorga.
Escrevo a verdade, e isto me mata. Sarah Kane.
De um ambiente aparentemente tranqüilo em um luxuoso hotel, que pode
ser o de qualquer luxuoso hotel do mediterrâneo, ou europeu, bem como
de qualquer outra parte do mundo, pinta-se um cenário de extrema
violência no ápice de uma guerra civil, permeado por ecos de Varsóvia,
um entre armas, estado policial, coquetéis molotov, HK's, assassinato,
fogo, cinzas, enxofre, sujeira, sangue, contradição, suor, gangues,
sexo, canibalismo, mujahedins, estupro, pedofilia, nazi-facistas,
vermelho, noticiários mega-sensacionalistas, televisivos e impresso,
câmeras de vigilância, punks, padres, religião, vício, hezbollah,
I.R.A., E.T.A., ditaduras, granadas, afegãos, crianças armadas,
lágrimas, felação, xiitas, FARC’s, sunitas, verde, horror em praça
pública e em ambientes privados, guardas, soldados, terrorismo,
antraz, torre de vigília, dinheiro, milhões, tortura, vigilância,
cartazes, pichações, protesto, revolta, medo, liberdade, hardcore,
faixas, arames, alta voltagem, devastadora solidão, hotel, conforto,
fiambre, queijo, cama, demência.
Estes, entre outros temas, supõe-se, compõem e refletem o cenário a
que Blasted está inserido. Enfim, um ambiente urbano que torna-se
violento, onde é definitivamente escancarada a total falta de
segurança e controle sobre seu ambiente, físico e psicológico, como em
toda guerra – da mínima experiência empírica que possamos ter.
Personagens que extravasam seus estados da forma mais cruel possível,
mostrando a nua crueza de seu/nosso estado de ser mais natural – ali
não há a égide pirandelliana do ser composto em múltiplos, de variadas
facetas humanas conformadas por situações/alteridades variadas.
Tudo ali é atravessado pela idéias de esfacelamento, desde o mundo que
está a ruir ao lado de fora das paredes, e que avança, pouco a pouco,
para dentro do quarto, até realmente invadir e rebentá-lo,
literalmente e poeticamente, como o esfacelamento violento das
relações que ali se dão. Até mesmo a luz radiante, acolhedora do dia
claro de sol torna-se opressiva e violenta quando torna-se intensa o
suficiente para destruir e avançar quarto adentro na forma de uma
bombardeio. Esfacela-se a idéia de um ambiente supostamente seguro.
Não há mais paredes, nem trancas, nem conforto. Quando se reduz ao
mínimo, caem as máscaras.
Da evolução da situação inicial de normalidade aparente, transformada
de forma radical em peste artaudiana, acabam tendo de ser/estar
realmente da única maneira possível: suas humanidades escancaradas, a
refletir um estado interior turbilhante, angustiante, nauseante.
A poesia força espaço por meio de golpes violentos, na dramaturgia e –
ao mesmo tempo, na leitura do que é apresentado.
A fragilidade da personagem Kate é aproximada de alguns elementos
similares: o bebê que é trazido às últimas cenas, as flores que são
inseridas de forma magistral em momentos de suspensão; e contrastada
com o ar rude das esferas masculinas que ali estão: os homens, as
armas, o caos social.
A refletir a urgência que se presume o centro da violência física e
psicológica a que submete-se sob a hegemonia de um sistema
totalitário, o desenrolar do enredo nos leva a um encadeamento em que
o horror da situação nos revela uma outra faceta de humanidade,
desgarrada de artifícios. Como em Wladislaw Szpilman, n’O Pianista
(Roman Polanski – 2002), descortina-se um lado humano essencial, após
o desvelamento de camadas e camadas de aculturações que são
sobrepostas, revelando um cerne essencialmente humano: após
tirarem-lhe, um a um, seus códigos culturais que o preenchem e o
acompanham: a profissão, o status, o ambiente seguro e conhecido, a
dignidade, a alimentação, o vestuário, a família, a interação
social... o outro, a alteridade... passa-se a conviver consigo mesmo,
mas este já é um mesmo quase desconhecido, assustador, cru,
desprotegido, tangenciando Kaspar Hauser (O Enigma de Kaspar Hauser
- Werner Herzog, 1974) aculturado – com a diferença de que este não
conheceu anteriormente um estado aculturalizado, e aquele foi-lhe
íntimo, portanto, considero a devastação, neste caso, maior. Deveras.
As regras culturais tornam-se pueris. Abre-se espaço de forma violenta
para os impulsos primevos do ser, estes que permanecem escondidos sob
camadas de repressão a que somos submetidos, que nos é imposto e que
nos impomos, desde a infância, no sentido de um bem comum para a
manutenção do Estado de Direito. No quadro que se desenha, torna-se
desnecessária qualquer necessidade de se ater à convenções. O que
impera é o desejo de sobrevivência, e até mesmo o termo é colocado em
xeque. Aproxima-se do ideário artaudiano do desvelamento frente à
peste: as máscaras caem de forma brutal, e em "Blasted", isto é
vigoroso, ainda que possa ser chocante, terrível. Assim com Kaspar,
Kate é atingida pelo entorno que se transforma no tempo, na tentativa
desajeitadamente pessoal de compreendê-la – até mesmo em estados
inconscientes - numa reflexão sobre as incertezas diante dos golpes
dos acontecimentos e sobre a artificialidade do que chamamos
normalidade. Artificialidade esta que se supõe mesclada com a
normalidade desde o início em que é estabelecido o jogo – a refletir
um estado de realidade, naturalista. Artificialidade que se escancara
de forma brutal - quando as paredes do quarto são destruídas, quando
em face à violação dos corpos as camadas culturais e comportamentais
se esvaem.
Cada um por si e Deus contra todos é o título original que Werner
Herzog deu ao filme, e que parece, a meu ver, uma máxima anterior ao
tratar-se de cenários como o que se descortina em Blasted. Por que
neste, julgo que não há um Deus piedoso ideal, realmente, que possa
permear este universo, tamanha violência contida ali.
A diferença está na forma magistral com que Sarah Kane consegue
inserir este tipo de transformação de violência num tempo extremamente
comprimido, que é o tempo de sua escrita teatral.
Texto fluído, coloquial, por vezes, sem muitas rubricas, e as poucas
que há estabelecem muito mais uma linguagem poética do que realmente
indicações a serem seguidas à risca por um encenador – reflexo de um
Zeitgeist que já teve em sua conformação um desenrolar de uma evolução
de seus modos de escrita, e que dialoga e retorna para a atenção ao
papel de ruptura com regras gramaticais, ou a qualquer artifício que
possa impedir a construção de realidade por parte do dramaturgo
contemporâneo. A criação poética alça vôos. A beleza ata as mãos ao
grotesco. O encenador é obrigado a tornar-se cúmplice de sua linguagem
poética, muito mais próximo de um confidente, do que alguém destinado
a tentar realizar o inviável.
O texto dramático, da forma como o é apresentado, avaliando sua
evolução histórica, mantém o status de ponta de lança, quanto ao
estilo, de forma a incorporar as tendências contemporâneas de
pós-dramaticidade: o texto mostra tanto as falas quanto os
pensamentos, sem a necessidade de indicações quaisquer para isto; nem
indicações para intenções, ou para estados de espírito ou modos de
comportamento, ou deslocamentos, modelos tão importantes ao teatro
moderno, do qual temos exemplos ad infinitum. Tendência contemporânea
vista em outros autores, como em Bernet i Jornet, Daniel Veronose,
David Harrover, Heiner Müller, Jon Fosse, Martin Crimp, Richard
Maxwell, ed alii., como também em Samuel Beckett, este sem dúvida nos
deixando um legado de escrita dramatúrgica imprescindível para a
compreensão de seu modus contemporâneo, assim como a herança
simbolista - no sentido de dar asas à imaginação, sem amarras, sem
limites, a promover idéias que ecoam até os nossos dias - no intuito
de se poder fazer da realidade algo palpável e moldável, de acordo com
nossa extrema urgência e necessidade.
Sarah Kane, ainda que tenha encontrado nos próprios cadarços um fim
possível para um meio impossível, encontrou também através de sua
escrita, um modo de deixar ao mundo um pouco de sua essência, e
Blasted, somada aos outros textos, pode-se nos revelar talvez um mapa
de seu pensamento sobre o mundo, sobre seu modo particular de
interpretar a realidade a que estava inserida, e o modo sobejo em que
se propunha a criar universos.
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Um comentário:
por acaso...porem nem tanto... vim cair aqui no seu blog...
ENCANTADA!!!
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