quinta-feira, 21 de outubro de 2010

DUPLO

ESCREVER COMO SE A TUA VIDA DEPENDESSE DISTO
-
-
-
Mas
como saber
Digo
A VIDA DEPENDENDO DISTO
Me pergunto
SERÁ QUE JÁ ESTOU
SERÁ QUE ALGUM DIA JÁ DEIXOU DE SER-ESTAR

Se sou todo amálgama do que crio
- sim
implícito toda a teoria plagicombinatória antropofágica e copy leftiana - cito
eu sei já me atolei e desatolei nisto até o pescoço -
Mas
se sou todo amálgama e resultado duplo do que escrevo então


Olha
estes dias tive um SONHO - este é pra Juliana G. e o Bob A. -

1.
Eu já havia sonhado com este cachorro antes
- pelo menos é a sensação que paira
sem
no entanto
lembrar-se de que situação exatamente

NO SONHO AGENTE SENTE - não precisa VER pra constatar necessariamente

És un perro que me persigue

Magro
estreito
preto e branco
focinho fino
a morder
comer coisas que não devia
com lentidão
e insistência
Desta vez
pôs inteiro na boca meu coturno
-
sim
eu
roupa de combatente
-
com meia e tudo

Fazendo com ele uma bola que já ia pela garganta
Eu com um pedaço de pau
desolado
a tentar tirar a bola de borracha e lã de dentro dele
a pauladas
e chutes
e o material ía pela garganta adentro
devagar
como uma sucuri engolindo um novilho no pampa

Até que meti o dedo dentro de sua boca
em beliscões
botes
afim de que ele não me mordesse
nem arranhasse minha mão em suas fileiras de dentes serrilhados
Ele se esquivava
Eu nas tentativas frustradas
Esquivavas - tentaivas - esquivas - tentativas
Tirei uma parte
Outra ficou dentro de seu corpo que tornava-se pouco a pouco translúcido e
sintético
Eu podia ver através dele que parecia agora com uma
caixa de celofane preta e verde comprida e
translúcida com
cara de cão
patas e rabo
que acabara de engolir algo difícil de fazê-lo
- e que mesmo assim o fez sem relutar
- e que ainda tentava se desvencilhar de mim
como se fosse eu o incômodo
Eu - o Incômodo
Eu (seqüêncial e amalgamado
Horror
nojo
medo
estafado
desolado
extremamente cansado da situação

Continuando

Consegui tirar o material de dentro daquele corpo plástico/aquoso
Neste instante ele se abre
e se desfaz em sua estrutura
como uma velha caixa de papelão em que suas dobras não mais se sustentam

E que sentido há nisto
Lacan -
Lynch -
Uma luz
Uma tentativa
Eu tenho pistas
Poderia revelar
Mas
Aqui não é o lugar pra isto
-
-
-
-
-
sentir a vida dependendo disto
-
-
-
-
-

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

NEVERMORE . UM PASSEIO COM ALLAN POE



Diário de Bordo.
Piraquara, Centro, Casa da Cultura, 16h30.
Último dia de filmagens do excerto BERENICE, para o projeto NEVERMORE - TRÊS PESADELOS E UM DELÍRIO DE EDGAR ALLAN POE.

Cara, como esta cidade têm luz. Que dias luminosos estão sendo estes.
Sol branco.
Parece a costa grega.
Muita luz.
Muuuita luz.

Estou lembrando agora que hoje, após o almoço, quando estávamos na
rua conversando, em frente à locação, veio um senhor já nos seus
longos anos, de cabelos e bigode todo brancos, e seu cabelo, biode e a sua pele tornaram-se ainda mais brancos quando ele saiu
da sombra, me viu e, sorrindo, veio ter comigo, e disse, ao passar
a meu lado, dando um tapinha no meu ombro:
"Bigodinho à moda antiga, hein?! Parabéns!"

Bruno e Merry ficaram só rindo. Bruno ainda protestou: "Pô! E o meu?"
*
E eu que vim conversando sobre AERONÁUTICA com o motorista da Van?
E ele colocou MADONNA pra agradar as meninas na van!
O cara não é gente boa?
*
Olhando estes morros atrás da casa do Marcinho, penso:
Nossa, a praia ‘stá mesmo logo ali! rsrs
E eu aqui, de traje de época, colete, casaco, verificando se este
relógio de bolso é mesmo de ouro!
*
Ssshhhhh...
Silêncio
Deitado no chão,lendo e re-lendo o conto que estamos filmando, vejo
Maurício Baggio (dir. Fotografia) sendo perfeccionista e
experimentador na montagem de luz, desde o início.



Neste instante, especificamente, montando a luz para a cena em que a
personagem BERENICE é mostrada em pé, dentro de um caixão, após sua
suposta morte. Rafaella Marques me surpreendeu mais uma vez (óbvio)
com a profundidade e o despojamento de sua interpretação. É realmente
impressionante e delicioso vê-la executando com maestria, precisão os
vários estados de BERENICE.
Indo da vivacidade jovial à doença, seu corpo contorcendo-se
febrilmente, ao mesmo tempo em que se percebia sua total sintonia com
o tempo do take, a respiração coordenada, o comprometimento.

- Sou mesmo o maior “paga-pau” desta menina! A Rafa é a irmã que tá no
coração em definitivo.

A equipe de arte produziu um dos ambientes esteticamente mais bonitos
com que eu já me deparei: simples, um tanto soturno, um tanto
requintado, um tanto sóbrio. Parabéns Fabio Allon (dir. Arte), que
esteve até ás 3 da matina finalizando o GOL A GOL, nosso outro longa,
dormiu muito pouco, e está de corpo e alma dedicado a este trabalho.
Tenho certeza de que os outros excertos a serem filmados ficarão
fantásticos - nos dois sentidos, afinal... é Allan Poe, rsrs

E creio que Marco Nowak está mesmo se deliciando com a sua Canon EOS
7D. Ele fotografa a todo tempo, com precisão, e discrição. Muitas
vezes só ouvia os cliks de sua câmera, e nem mesmo sabia onde ele
estava, em meio ás sombras daquele casarão de sonho, ou de pesadelo,
no caso de NEBERMORE.


Velas, espelhos, brumas que subiam rente à escada que dava para não sei
onde... não tem fim, me parece. Sua subida. Só reparo, daqui onde
estou, na intensa luz banhando seu corrimão, seus degraus, onde, dali
a pouco, Rafaella - BERENICE vai descer, nos dando mais uma vez um
grande show, e vamos todos prender a respiração novamente, tenho
certeza.

Vejo Helena (Assist. de Câmera) e Nika Braun (continuista) rindo de
modo natural na sua meninice natural, de algo que só elas sabem,
exalando suas perspicácias de raciocínio sempre afiadas. Pode baixar
toda a luz que aqueles olhos não deixam ninguém perdido.

Vejo-as, mais Eugênia (assist. de direção), Bruno de Oliveira (assist.
de direção), por momentos, saindo de suas funções primordiais, e
auxiliando também em questões da equipe de arte, carregando objetos,
até mesmo puxando um ou outro cabo de eletricidade, e me sinto
comovido, ao constatar o espírito de equipe que paira no ar, e que
torna o trabalho ainda mais bonito.
Sei que o orçamento é curto, e não por isto, vejo as pessoas ainda
mais comprometidas com o seu fazer artístico.
E me emociono. Me emociono mesmo.
Simplesmente porque é bonito, porque conheço estas pessoas, porque sei
de sua dedicação, e de sua vontade.

Paulo Biscaia há pouco não estava sentindo-se muito bem, e se abriu,
não guardou para si. Um gesto generoso.
E mesmo assim, não vi sua aura de paixão esvair-se nem um único
instante durante as gravações.
Tenho a impressão, vendo-o agora daqui do canto, com esta lâmina de
luz que quero torcer, de que ele sabe exatamente de antemão como irá
conduzir o trabalho. Isto gera uma sensação de confiançae segurança em toda a equipe, tenho ceteza - ainda que não os tenha entrevistado. Sem deixar o risco Guignollesco de lado, porque sem ele, também, não seria tão emocionante.
*
Após esta cena com a Rafa, será a minha (uma das últimas), em pé, em
frente ao caixão, fitando pela primeira vez BERENICE morta.
Estou a refletir na criação deste PERSONAGEM, E NO MODO DE COMO ELE
AGIRIA NESTA CENA, e chego à seguinte conclusão: Sim, uma lágrima
deverá rolar por BERENICE, ainda que não seja uma lágrima ligada a um
sentimento romântico, mas sim, muito mais relacionada ao fato de que
àquele objeto de desejo de EGEU, configurado naquele momento na figura
de BERENICE, foi-se. Porque foi-se o estado em BERENICE que fazia
tomar a atenção de EGEU. Não, ele não deveria permanecer na sua
imparcialidade altista. Um sinal deveria ser emitido. Uma lágrima
deveria rolar. Mas uma lágrima fria, sem sobressaltos, de um rosto
impassível, sem comprometimento, quase como um estado automático, como
quando KASPER HAUSER sente pela primeira vez o calor da chama da vela
contra sua pele, perpetuado pelo observador atento á sua condição.
Neste momento, o observador seria ele, e ficaria atônito até mesmo com
o fato uma lágrima rolar. A lágrima rola, pelo fato do objeto de
estudo, e da situação não mais o prenderem no estado de PERMANÊNCIA DE
ATENÇÃO.

É isto que pretendo propôr no momento da cena.
Se o diretor não gostar, refazemos. É isto.
Minha ligação com o Paulo me permite certas liberdades de
experimentações, e a ele lhe sou grato por isto.

*
Também não deixei de pensar no Dani (o piazão foda!!!), que iria ser o
"titular" de Berenice, e não pôde, por questões de outros
compromissos, e que havia também me indicado, ficando assim, segundo
suas próprias palavras, "com o coração um pouco menos apertado".
Espero honrá-lo com o melhor do meu trabalho.
Obrigado Dani!
“Têm que fazer, têm que fazer!”
Ele bem poderia ter indicado o VIGOR MORTENSEEN, neste trabalho com a
VIGOR MORTIS.
Nada mais justo não???
*
VALEU PRODUÇÃO
VIVI, TESSEROLI
FUI SUPER BEM TRATADO
E PUDE CONSTATAR A ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO

VALEU MARCE
ANDRÉ, FRAGOSO
ARRASARAM DEMAIS
Acho que fiquei "bem na fita!".
Não fiquei? rsrs
*
Para mim, além de ser um prazer, há também a imensa satisfação de
trabalhar com um grupo que, assim como a PROCESSO, está também "no
coração".
Longa vida VIGOR MORTIS!!!
Bon Voyage à San Francisco - USA.
Que o festival lhes traga fervilhante de idéias.
*
LOVE
KNOLL

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Quando a Violência nos Espelha um Self Ominoso



Encenado na Itália a 23 de outubro de 2008, sob a direção de Elio
Capitani, ou em várias outras partes do mundo desde a morte violenta e
prematura de sua autora – Sarah Kane, Blasted vêm sendo considerada a
mais polêmica obra teatral contemporânea.



O mundo, em Blasted, colapsa em uma sala de hotel.

Foi o momento certo para colocar Blasted no palco. Para mim, para fora
do ar em nosso país e para a coisa que conta mais: os atores ideais
.
Elio de Capitani.

Eu não gosto de filmes violentos, e eu não gosto de peças violentas e
a razão é que eu não gosto de violência
. Sarah Kane.

Não se pode morrer e voltar. Isso não é morrer, é desmaiar. Quando
você morre, é o fim
. Sarah Kane (Blasted).

Temos de ver as coisas de que já sabemos que aconteceria, e temos de
ser capazes de entendê-las
. Sarah Kane.

Que tu não prove a dor, que tu não saiba de nada que você não precise
saber.
Sarah Kane (Blasted).

Sarah esperava muito no mundo e muito mais na vida, talvez mais do que
mereça este mundo e esta vida.
Juan Mayorga.

Escrevo a verdade, e isto me mata. Sarah Kane.



De um ambiente aparentemente tranqüilo em um luxuoso hotel, que pode
ser o de qualquer luxuoso hotel do mediterrâneo, ou europeu, bem como
de qualquer outra parte do mundo, pinta-se um cenário de extrema
violência no ápice de uma guerra civil, permeado por ecos de Varsóvia,
um entre armas, estado policial, coquetéis molotov, HK's, assassinato,
fogo, cinzas, enxofre, sujeira, sangue, contradição, suor, gangues,
sexo, canibalismo, mujahedins, estupro, pedofilia, nazi-facistas,
vermelho, noticiários mega-sensacionalistas, televisivos e impresso,
câmeras de vigilância, punks, padres, religião, vício, hezbollah,
I.R.A., E.T.A., ditaduras, granadas, afegãos, crianças armadas,
lágrimas, felação, xiitas, FARC’s, sunitas, verde, horror em praça
pública e em ambientes privados, guardas, soldados, terrorismo,
antraz, torre de vigília, dinheiro, milhões, tortura, vigilância,
cartazes, pichações, protesto, revolta, medo, liberdade, hardcore,
faixas, arames, alta voltagem, devastadora solidão, hotel, conforto,
fiambre, queijo, cama, demência.

Estes, entre outros temas, supõe-se, compõem e refletem o cenário a
que Blasted está inserido. Enfim, um ambiente urbano que torna-se
violento, onde é definitivamente escancarada a total falta de
segurança e controle sobre seu ambiente, físico e psicológico, como em
toda guerra – da mínima experiência empírica que possamos ter.

Personagens que extravasam seus estados da forma mais cruel possível,
mostrando a nua crueza de seu/nosso estado de ser mais natural – ali
não há a égide pirandelliana do ser composto em múltiplos, de variadas
facetas humanas conformadas por situações/alteridades variadas.

Tudo ali é atravessado pela idéias de esfacelamento, desde o mundo que
está a ruir ao lado de fora das paredes, e que avança, pouco a pouco,
para dentro do quarto, até realmente invadir e rebentá-lo,
literalmente e poeticamente, como o esfacelamento violento das
relações que ali se dão. Até mesmo a luz radiante, acolhedora do dia
claro de sol torna-se opressiva e violenta quando torna-se intensa o
suficiente para destruir e avançar quarto adentro na forma de uma
bombardeio. Esfacela-se a idéia de um ambiente supostamente seguro.
Não há mais paredes, nem trancas, nem conforto. Quando se reduz ao
mínimo, caem as máscaras.

Da evolução da situação inicial de normalidade aparente, transformada
de forma radical em peste artaudiana, acabam tendo de ser/estar
realmente da única maneira possível: suas humanidades escancaradas, a
refletir um estado interior turbilhante, angustiante, nauseante.

A poesia força espaço por meio de golpes violentos, na dramaturgia e –
ao mesmo tempo, na leitura do que é apresentado.

A fragilidade da personagem Kate é aproximada de alguns elementos
similares: o bebê que é trazido às últimas cenas, as flores que são
inseridas de forma magistral em momentos de suspensão; e contrastada
com o ar rude das esferas masculinas que ali estão: os homens, as
armas, o caos social.

A refletir a urgência que se presume o centro da violência física e
psicológica a que submete-se sob a hegemonia de um sistema
totalitário, o desenrolar do enredo nos leva a um encadeamento em que
o horror da situação nos revela uma outra faceta de humanidade,
desgarrada de artifícios. Como em Wladislaw Szpilman, n’O Pianista
(Roman Polanski – 2002), descortina-se um lado humano essencial, após
o desvelamento de camadas e camadas de aculturações que são
sobrepostas, revelando um cerne essencialmente humano: após
tirarem-lhe, um a um, seus códigos culturais que o preenchem e o
acompanham: a profissão, o status, o ambiente seguro e conhecido, a
dignidade, a alimentação, o vestuário, a família, a interação
social... o outro, a alteridade... passa-se a conviver consigo mesmo,
mas este já é um mesmo quase desconhecido, assustador, cru,
desprotegido, tangenciando Kaspar Hauser (O Enigma de Kaspar Hauser
- Werner Herzog, 1974) aculturado – com a diferença de que este não
conheceu anteriormente um estado aculturalizado, e aquele foi-lhe
íntimo, portanto, considero a devastação, neste caso, maior. Deveras.



As regras culturais tornam-se pueris. Abre-se espaço de forma violenta
para os impulsos primevos do ser, estes que permanecem escondidos sob
camadas de repressão a que somos submetidos, que nos é imposto e que
nos impomos, desde a infância, no sentido de um bem comum para a
manutenção do Estado de Direito. No quadro que se desenha, torna-se
desnecessária qualquer necessidade de se ater à convenções. O que
impera é o desejo de sobrevivência, e até mesmo o termo é colocado em
xeque. Aproxima-se do ideário artaudiano do desvelamento frente à
peste: as máscaras caem de forma brutal, e em "Blasted", isto é
vigoroso, ainda que possa ser chocante, terrível. Assim com Kaspar,
Kate é atingida pelo entorno que se transforma no tempo, na tentativa
desajeitadamente pessoal de compreendê-la – até mesmo em estados
inconscientes - numa reflexão sobre as incertezas diante dos golpes
dos acontecimentos e sobre a artificialidade do que chamamos
normalidade. Artificialidade esta que se supõe mesclada com a
normalidade desde o início em que é estabelecido o jogo – a refletir
um estado de realidade, naturalista. Artificialidade que se escancara
de forma brutal - quando as paredes do quarto são destruídas, quando
em face à violação dos corpos as camadas culturais e comportamentais
se esvaem.

Cada um por si e Deus contra todos é o título original que Werner
Herzog deu ao filme, e que parece, a meu ver, uma máxima anterior ao
tratar-se de cenários como o que se descortina em Blasted. Por que
neste, julgo que não há um Deus piedoso ideal, realmente, que possa
permear este universo, tamanha violência contida ali.




A diferença está na forma magistral com que Sarah Kane consegue
inserir este tipo de transformação de violência num tempo extremamente
comprimido, que é o tempo de sua escrita teatral.

Texto fluído, coloquial, por vezes, sem muitas rubricas, e as poucas
que há estabelecem muito mais uma linguagem poética do que realmente
indicações a serem seguidas à risca por um encenador – reflexo de um
Zeitgeist que já teve em sua conformação um desenrolar de uma evolução
de seus modos de escrita, e que dialoga e retorna para a atenção ao
papel de ruptura com regras gramaticais, ou a qualquer artifício que
possa impedir a construção de realidade por parte do dramaturgo
contemporâneo. A criação poética alça vôos. A beleza ata as mãos ao
grotesco. O encenador é obrigado a tornar-se cúmplice de sua linguagem
poética, muito mais próximo de um confidente, do que alguém destinado
a tentar realizar o inviável.

O texto dramático, da forma como o é apresentado, avaliando sua
evolução histórica, mantém o status de ponta de lança, quanto ao
estilo, de forma a incorporar as tendências contemporâneas de
pós-dramaticidade: o texto mostra tanto as falas quanto os
pensamentos, sem a necessidade de indicações quaisquer para isto; nem
indicações para intenções, ou para estados de espírito ou modos de
comportamento, ou deslocamentos, modelos tão importantes ao teatro
moderno, do qual temos exemplos ad infinitum. Tendência contemporânea
vista em outros autores, como em Bernet i Jornet, Daniel Veronose,
David Harrover, Heiner Müller, Jon Fosse, Martin Crimp, Richard
Maxwell, ed alii., como também em Samuel Beckett, este sem dúvida nos
deixando um legado de escrita dramatúrgica imprescindível para a
compreensão de seu modus contemporâneo, assim como a herança
simbolista - no sentido de dar asas à imaginação, sem amarras, sem
limites, a promover idéias que ecoam até os nossos dias - no intuito
de se poder fazer da realidade algo palpável e moldável, de acordo com
nossa extrema urgência e necessidade.

Sarah Kane, ainda que tenha encontrado nos próprios cadarços um fim
possível para um meio impossível, encontrou também através de sua
escrita, um modo de deixar ao mundo um pouco de sua essência, e
Blasted, somada aos outros textos, pode-se nos revelar talvez um mapa
de seu pensamento sobre o mundo, sobre seu modo particular de
interpretar a realidade a que estava inserida, e o modo sobejo em que
se propunha a criar universos.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Descrição de Objeto Primitivo no primata Kafkiano




Há o objeto-estudo , e há o objeto sentimento. Dos dois, fico eu com o
primeiro.
De forma e tamanho a preencher o espaço de uma mão fechada, eu o tenho guardado no espaço central desta criatura: este primata ingênuo a quem eu devo impelir à evolução.
Assentada estou no topo desta organização, em algum lugar cerebral, entre o frontal e o occipital, a conviver psiquicamente com este amontoado de células, a formarem moléculas; estas tecidos; estes, órgãos, músculos e ossos.
E no centro superior deste, o objeto em questão: o objeto-coração.
Pulsante.
Vermelho.
Seus canais internos, suas vias, suas válvulas e seu potente movimento ininterrupto o transformam num dos melhores artifícios que a engenharia orgânica poderia conceber.
É ele quem faz correr por este organismo o alimento vital, rubro, que irriga-o como um todo.
Por anos seguidos, vivemos de forma harmoniosa.
Hoje, como em tudo, há mudanças.
Deve haver.
Anseio dominá-lo.
Antes de sermos encontrados, vivendo isolados do mundo dos homens, expostos a inúmeras adversidades no seio da mata, por vezes o vi pulsar como sempre quis, livre, com minha mínima interferência apenas em momentos esporádicos.

Um coração selvagem não precisa de uma intelectualidade que o repreenda
Eu pensava.

EU VIVIA ADORMECIDA.

Agora estamos juntos.
E porque agora estamos juntos, (na ironia deste compartimento-cela-caixote a que nos aprisionaram), eu venho crescendo juntamente a este sistema em que atuo.
Tenho, a cada instante, relativizado de forma crescente, sobre o processo a que estamos sendo submetidos.
Aqui neste navio, cruzando o oceano, tento impôr ao corpo um controle gradual na tentativa mimética de me aproximar destes primos estranhos: maiores e mais altos, e no entanto, com menos pêlos de revestimento.

Falam!

De minha parte, já otive êxitos significativos:
1. Abrir e beber uma garrafa de aguardente, ainda que me cause infinito asco. Os homens vibram. Não mais me queimam com seus cigarros. Dedicam cada vez mais tempo a me observar. Em mim, a intuição de que talvez assim, eu consiga um pouco mas de liberdade – se conseguir dominar o coração;
2. A nova linguagem que, pouco a pouco venho assimilando e tentando impôr ao domínio da fala (definitivamente, basta de urros e grunhidos primatas – cada sítio com a sua comunicação, e isto, aqui, não me serve);
3. E o controle gradual dos excessos naturais deste selvagem coração. Seus impulsos explosivos ainda são constantes, mas eu hei de dominá-lo por completo - O absurdo há de sonhar com a lógica.

Neste intuito de impôr o controle, afim de tentar compreendê-lo, concedo-me ouví-lo. Desço até bem perto de onde ele está alojado e, tentando traduzir o som potente e ininterrupto que produz, ouço seu andamento:



PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO
(...)
PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO / PUL
SAR / PUL
SAR
(...) EU
PUL
SAR / PUL
SAR / PUL
SAR / PUL
COM SUA LICENÇA
SAR / BA
TER / BA
TER / BA
TER / BA
TER / PUL
SAR / PUL
SAR

DESCREVO EU UM OBJETO PRIMITIVO:

PUL
SAR /
ME PERMITA
PUL
SAR /
ESTE CORPO QUE ME APRISIONA
PUL
SAR / PUL
SAR
ESTA MENTE, ESTA INTELECTUALIDADE
PUL
SAR / PUL
SAR /
QUE AGORA ME QUER DOMINAR

AGORA E A CADA DIA MAIS E MAIS CULTURALIZADA PELO CONTATO COM ESTES OUTROS SERES, A IMPÔE REGRAS, QUERER DOMINAR, DITAR RITMO E IDEOLOGIA.
EU CRESCI COMPLETAMENTE LIVRE

PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO / PRIMI
TIVO /

PREFERIA O HOMEM DE ANTES, O SELVAGEM, PUPILAS DILATADAS, OS GRUNHIDOS EM MEIO À MATA, A ACELERAÇÃO EM FRENTE AO COMBATE IMINENTE EM BUSCA DA SOBREVIVÊNCIA DIÁRIA NO MEIO SELVAGEM.

EU
(confunde-se / sopro / arritmia), OU MELHOR, A CONSCIÊNCIA QUE COMANDA O CÉREBRO E O CORPO QUE ME TRANSPORTA, E À QUAL ESTOU LIGADO INTIMAMENTE.

EU
EU ME DÔO (dor) POR INTEIRO E COMPLETAMENTE, POR PERMANECER ENCLAUSURADO NESTE CORPO
QUERO SALTOS MAIORES, PODER VOLTAR AOS CIPÓS.

A MATA É MINHA ENCICLOPÉDIA!

SIM, ME UNO À IMAGINAÇÃO E ALÇO VÔOS DISTANTES, ALÉM DOS GRANDES LAGOS, PARA ONDE QUERO, OU DEIXAR ATÉ MESMO ME CONTAMINAR POR ESTE SENTIMENTO ESTRANHO PARA MIM, PARA ESTE CORPO. SERIA UM TIPO DE PAIXÃO? EU, SOLITÁRIO, SEM NUNCA TER VISTO UM OUTRO IGUAL: APAIXONAR-ME COMO QUERO, E QUANTO QUERO, E QUERO, E COMO QUERO QUEIMAR
SIM, PORQUE É ISTO O QUE FAÇO DE MELHOR.

ARDER

ARDER

SUBJUGADO CADA VEZ MAIS E CONTINUAMENTE PELA consciência QUE TENTA UM DOMÍNIO DE FORMA CRESCENTE, DIA-A-DIA, QUE ME ACELERA.
E DESACELERA.
QUANDO CAI A NOITE, SENTINDO-ME LIBERTO, TENCIONO ESTE CORPO À LUXÚRIA.
À DANÇA, AOS VÍCIOS DA CARNE, AO SEXO.
E NO QUE ME ACELERA, AUMENTA MEU DESEJO DE QUERER MAIS.
RECOMENDARAM QUE ME ACALMASSE.

Me impuseram um ritmo mais lento (por meio de drogas, por vezes adormeci
Que eu não batesse tão forte, não galopasse tão forte.
Nunca vou ter um ataque próprio e fulminante. Nunca terei.
Por vezes sangro. Por vezes me desfaço em mim mesmo
Por vezes paro.
Há momentos em que suspendo o galope, por segundos.
Por tudo isto que faço, para tudo isto, é que se faz a vida, em toda a sua plenitude. Sou o motor impulsionador.
Desde modelos mais novos até outros já cansados, todos com funções similares, bem ordenados, bem ajustados. Sou todo sentimento-máquina, a esfriar e a queimar, a galopar e a parar.
Há o sopro, no meu mais íntimo. Já me pegou desprevenido algumas vezes, mas aprendi a conviver harmoniosamente com ele. É como um soluço fora de hora, aumentando com o passar do tempo. No meu eu mais íntimo. Uma válvula mitral, uma outra, que me trai.
Transplantado um outro eu, para um outro seu, a gerar-lhe

VIDA CONTINUADA

POR MAIS ALGUM TEMPO

Meu tempo é intrínseco ao fluxo sanguíneo, que me nutre, e que me nutro.
Vermelho como quero que seja.
Vermelho como tenho de ser.

1. Não às drogas anestesiantes.
2. A favor dos cafeinados e estimulantes em geral.
3. A favor da paixões intensas e explosivas.
4. Redução drástica do controle mental.
5. Repúdio ao sangue ralo e calmo.

Me inflo e grito pelas válvulas toda a imensa vontade de liberdade.

Viva o dia em que eu puder me despedir d'estas amarras. Um coração pairando livre por sobre qualquer pólo, qualquer hemisfério. Nos trópicos eu irei me retirar continuamente e conclamar a outros que façam o mesmo.

SOPRO
GALOPE

Morte a cada intervalo de batimento.
Vida a cada impulso de sangue em movimento.
Sou máquina-sentimento.
O pulso aberto.
A ferida que sangra.
Os lábios inchados da paixão febril.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Maiakóvski


Ó delicados! Vós que pousais o amor sobre ternos violinos ou, grosseiros que pousais sobre os metais! Vós outros não podeis fazer como eu, virar-vos pelo avesso e ser todo lábios.

Vladimir Maiakovski

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

ODE TRIUNFAL


À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes -
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -
Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.

E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!

Londres, 1914 - Junho.