terça-feira, 28 de agosto de 2007

CARPETE . Conto


RICARDO LÍSIAS

Para Joaci Furtado

Minha mulher me varreu para debaixo do tapete de um jeito tão abrupto que eu acabei só com a roupa do corpo. Não pude trazer sequer a minha escova de dente. Ela não teria utilidade aqui embaixo mesmo, mas ao menos me deixaria com uma sensação de limpeza. Além disso, eu poderia usá-la como uma espécie de pequena vassoura e retiraria a poeira que me obriga a coçar o nariz quase o tempo inteiro. Eu também poderia usa a escova para, com toda delicadeza, espetar a barriga do nosso cachorro e expulsá-lo de cima de mim. Logo que minha mulher me varreu para cá, ele resolveu deitar-se no carpete com as pernas apoiadas nos meus ombros. Como sempre nos demos bem (o que fazia minha mulher quase morrer de ciúmes), resolvi deixá-lo descansar em paz. Alguns dias depois, comecei a me incomodar com o peso dele: acho que minha mulher parou de comprar ração e deve estar alimentando-o com arroz e feijão mesmo. Qualquer pessoa um pouco mais responsável sabe que, fazendo isso, o animal vai terminar obeso e com problema nos dentes e no estômago. Agora que eu já fui varrido mesmo, que diferença vai fazer para ela se o cachorro engordar até quase não conseguir ficar em pé?

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Resolvi o problema virando-me assim que o cachorro se deitava no meu pescoço. Evidentemente, ele esperava um pouco e insistia, mas aí eu mexia outra vez e ele acabava indo atrás de um lugar mais tranqüilo para dormir. Só que de alguns dias para cá, mais gordo do que nunca, ele resolveu dormir deitado na minha barriga. Escolado, assim que ameaço me virar, ele se levanta e move habilmente as patas para continuar em cima do tapete e, conseqüentemente, de mim. Se eu tivesse conseguido trazer comigo a escova de dente, poderia espetá-lo. Acho que já não sinto por ele o mesmo que antes.

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Se bem que eu posso estar sendo injusto: sempre que o cachorro está deitado no tapete, minha mulher passa ao nosso lado em direção à porta e, assim, não piso em cima de mim. Contra o salto dos sapatos dela, nem minha escova de dente teria alguma chance. Outro dia, bem na hora em que o cachorro estava comendo (arroz e feijão, com certeza, pois agora que me varreu para cá minha mulher não deve mais estar comprando ração), ela sem a menor cerimônia pisou nas minhas pernas e quase acertou a ferida. A propósito, já estou começando a ficar desconfiado: por que ela está usando salto alto tantas vezes?

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Claro, minha mulher deve estar passando todas as noites fora atrás de um substituto para mim. Ela fica ótima de salto alto, mais simpática e bem humorada. Eu nem sei como ela ainda não arrumou outro. Só pode ser por causa do cachorro: que homem daria confiança para uma mulher que nem sequer se preocupa em comprar ração ara um animal tão fiel e amoroso? Com arroz e feijão, ele acaba ficando obeso e oferece um espetáculo horrível para as visitas.

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Por falar nisso, ontem alguém veio nos visitar. Bateu na porta, gritou alguma coisa e empurrou um papel por baixo da porta. Fiquei morrendo de curiosidade, mas não alcancei o bilhete daqui. O cachorro, claro, não fez o menor esforço para me ajudar. Nossa relação definitivamente já não é a mesma. Acho que era alguém importante, pois minha mulher passou praticamente correndo pelo tapete e foi telefonar da extensão do quarto. Continua boba: do jeito que o tapete é grosso, quase não consigo ouvi r nada daqui debaixo. Nem mesmo quando ela grita praticamente do meu lado. Percebo, é lógico, que ela está falando alguma coisa, mas não consigo entender nada. O contrário, acho, também é verdadeiro: duvido muito que tanto ela quanto o cachorro consigam me ouvir. Já pedi mais de dez vezes a minha escova de dente, mas tudo que consegui foi um prato de arroz com feijão, que aliás tive de dar um jeito de comer sem os talheres, pis ela me varreu para baixo do tapete de um jeito tão abrupto que não tive tempo nem mesmo de pegar uma colher.

RICARDO LÍSIAS é autor de Duas Praças, entre outros.

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