quinta-feira, 23 de agosto de 2007

O LEGADO . Conto


Era ele um homem de princípios. Barganhava, é verdade, com vilezas de pouca monta, coisa rala, miudezas. Mas houve dia em que se fez roxo o céu e neste dia o homem olhou par o estribo, deu de comer ao cavalo e duvidou da sorte. Três dias depois morreu de um galope malogrado do animal, num certame eqüestre já tradicional na região.
Deixou uma casa, duas fazendas e algum dinheiro em espécie, que ele não se fiava em modernidades. Filhos, nenhum. Cães, o inventário deu conta de seis, assim divididos: o de casa, o do campo da fazenda maior, o do pasto da fazendo menor, o que dormia ao relento, os que rogaram estadia e ficaram. Tinha mulher, por registro, mas nunca que se tenha visto por costume.
Deu no jornal o infortúnio e o povo até comentou por um ou dois dias na roda do bar o destino do homem. Depois, o sol tornou a se pôr e a arroba do boi subiu, e a terra foi arada com ancinho, e acabou-se o estoque de doce de Cosme-e-Damião no bar do seu Onofre.
Um dia, a viúva dada por sumida, veio ter com o escrivão. Queria dar conta de saber o que era feito dos animais da casa. E ninguém sabia da vida doméstica do lar alheio, que ela fosse falar com o caseiro. Foi bater em porta do empregado, mas era estranho, o cão da casa se tinha ido. Mas que lá ficasse um dia ou dois que iam procurar na lavoura.
No primeiro dia, desabaram, águas e ela ficou só e o caseiro cuidou de trancar com ferrolhos as janelas. No segundo dia, o café quente já não resolvia o frio do corpo. O cachorro não apareceu e nem o homem prometeu continuara procura. Na dúvida do que fazer, ela apoiou no queixo a mão, pensou por um fiapo de tempo, e fez chamar os empregados, que não era possível ter sumido o bicho assim, sem mais razão do que prestava. Ampliaram as buscas. Veio gente ver que sanha era aquela da viúva pelo cachorro, que havia de ter algo de errado.
O caso foi parar na prefeitura. Ela exigia o quarto de passo que fosse, mas queria o bicho e ao custo que fosse. Foi feita a vontade da dona e lá correu o vento de uns moçoilos dos arredores, que fossem pra dentro das terras e achassem o animal. Que, se voltassem sem ele, havia de ser dado o assunto por encerrado.
Começaram a pensar em roubo. Se era lá o animal de fino pêlo para justificar a hipótese foi causa que o acessor da prefeitura botou no relatório, a perguntar quando chegasse a hora. Mas não era. De característico, se soube que o bicho tinha uma das patas mais curta, que tinha era sido picado por uma peçonha em tempos idos. Cataram uns quatro ou cinco de estirpe similar nas redondezas, mas eras as marcas certas nos cachorros errados.
A privacidade do mistério era protegida por coisa que a mulher fazia não declarada. Todas as coisas, abrigadas na casa, não entravam na alma de ninguém. A viúva deixava rastros de umas coragens quietas. E o que tinha o povo a ver com aquela batalha íntima era coisa que pretendia ignorar.
Chegou de motorista um homem lá da governança do estado. A primeira providência do doutor foi uma oferta de uns trocados pela paga da solução. Deu conta de se fazer retirar depois de tanta pompa e circunstância, que eles desculpassem, que o Governador mandava os cumprimentos. Foi-se embora sem deixar o dinheiro prometido. Que os cofre públicos andavam à míngua.
Nunca se achou o bicho. E ela nunca que saiu de dentro da propriedade, cuidando de se entender com o silêncio. O homem, que morreu debaixo de umas cores plúmbeas de céu, tinha dado cabo do animal, com um engaste de pistola. Era que o cão lhe tinha amado. Mas sentimento era coisa pra enganar os trouxas, que o importante na vida era o trabalho, o dinheiro e a segurança. Morreu no galope incerto de um cavalo chucro. Que ele não se fiava na lei dos justos.

LÍVIA SGANZERLA JAPPE é jornalista.

Um comentário:

Anônimo disse...

Por que nao:)