quarta-feira, 12 de setembro de 2007

ENTRE O BEIJO E O MURRO





Leslie Fiedler tratou a crítica da cultura com o furor de um profeta intransigente, turbulento e alucinado.
Por Sérgio Augusto de Andrade - Março 2003

Aberrações: diante da obra de Leslie Fiedler foram poucos os que conseguiram disfarçar seu desconforto.

Quando eu tentei descobrir o que Leslie Fiedler andava escrevendo ou pensando, num momento de inocente divagação no começo do mês passado, eu nunca imaginei que ia acabar confirmando que nem todo mundo pensa ou escreve para sempre: Leslie Fiedler tinha acabado de morrer.
A morte não precisa ser só um memorial: ela pode também ser um memorando. E como eu só acredito ou em preconceitos ou no acaso, achei que talvez fosse um bom momento para tomar um óbito por um lembrete, e – certamente por mera afeição pela época em que abri pela primeira vez Love e Death in the American Novel – voltar a ler Leslie Fiedler.
É uma experiência e tanto.
Com sua fixação ao mesmo tempo romântica e vigorosa pelas qualidades usualmente subversivas do periférico, Leslie Fiedler foi um crítico que sempre preferiu comentar a arte e a literatura a partir das margens, nunca do centro: acreditar que a análise da imaginação deveria ser uma aventura tão arriscada e perigosa quanto qualquer sonho ou qualquer pesadelo configurava a mais teimosa de suas convicções e era expressa num estilo cuja veemência cortejava o escândalo com uma alegria quase obscena.
As reações que provocava sempre foram extremas: se William Faulkner adorava visitá-lo em sua casa em Montana para ler trechos de Luz em Agosto, Saul Bellow nunca hesitou em classificar Love e Death in American Novel como o pior livro já escrito sobre literatura americana. As reações do próprio Leslie Fiedler nunca foram particularmente serenas: ele sempre repetiu que, caso tivesse conhecido Ezra Pound, iria antes de tudo beijar suas faces – para logo em seguida esmurrá-lo. Era uma atitude razoavelmente previsível – a crítica de Leslie Fiedler sempre esteve muito próxima ou de um beijo ou de um murro. Por isso, se tivesse conhecido Ezra Pound, Leslie Fiedler só poderia mesmo ter reagido com dois únicos gestos possíveis não só para seu temperamento, mas especialmente para sua inteligência. Poucas vezes a literatura foi tratada como uma questão tão visceral.
Love & Death in American Novel é um livro extraordinariamente influente que foi publicado em 1960 e cuja tese principal, em certa medida, havia sido adiantada por um ensaio sobre Hucleberry Finn que Leslie Fiedler havia escrito 12 anos antes e no qual sustentava, com uma candura perturbadora, que a relação inter-racial entre Hucleberry Finn e Tom Sawyer era marcada por um componente muito mais erótico até do que se supunha em certos círculos mais – digamos – progressistas. Segundo Leslie Fiedler, a amizade entre os dois era uma afeição alimentada por uma espécie de terror que, em última instância, acabava definindo os fundamentos da própria literatura americana – e que consistiam, basicamente, numa essencial incapacidade para lidar com a sexualidade adulta (o que explicava por que a maior parte das personagens masculinas nos romances americanos sempre permanecia num estado de infantilidade incipiente e acabava sempre fugindo, de uma forma simbólica ou literal, para a floresta ou o mar). Criada à sombra de uma figura tão sintomática como Rip Van Winkle, a literatura americana só podia sublimar a intensidade de sua fobia por sexo a partir da elaboração quase desesperada de uma obsessão patológica com a morte – o que justificava, por sua vez, toda dinâmica de dominação da poderosa tradição gótica sobre sua imaginação e suas fantasias. A vinculação clássica entre a expressão do impulso erótico e a pulsão de morte era naturalmente um lugar comum da teoria freudiana; o que tornava sua aplicação em Love & Death in the American Novel tão deliciosa era a radical disposição com que Leslie Fiedler revelava tudo o que havia de ferocidade, de vertigem e de arrebatamento carnal nos grandes clássicos da literatura americana – cujas expressões mais consagradas eram tidas em geral como a mais heróica e saudável das leituras abertamente inspirado em D. H. Lawrence, embora muito mais atento que Lawrence à importância do negro como mito e arquétipo, Love & Death in the American Novel exibia o que havia de mais triunfalmente doentio em cada clássico – e expunha a impecável galeria das grandes figuras do romance americano como um grupo não exatamente impermeável ao lirismo mais refinado das relações homoeróticas. Confrontados com as lições de Leslie fiedler, pouquíssimos conseguiram disfarçar seu desconforto. Em suas páginas, a miscigenação surgia como o verdadeiro tema de O Último dos Moicanos; a sedução e o sadismo como os dois grandes motivos de A Cabana do Pai Tomás; a necrofilia como o impulso básico de Henry James; a trama de Moby Dick era definida não como uma caça à baleia mas como uma história de amor – e a de Henderson, o Rei da Chuva, de Saul Bellow, como uma versão homossexual da fábula de Tarzan. De Charles Brockden Brown e Edgar Allan Poe a Ernest Hemingway, a grande obsessão da literatura americana sempre consistiu na busca de um substituto inocente para o adultério, o casamento e o incesto: para Leslie Fiedler, o que o escritor americano mais temia era simplesmente a maturidade.
Por celebrar um aspecto da literatura americana que subvertia diretamente as convenções mais arraigadas da cultura dos Estados Unidos, Love & Death in American Novel conquistou uma curiosa notoriedade pop; Em Exposed, por exemplo, um filme merecidamente esquecido de James Toback, uma edição do ensaio aparece nas mãos de Nastassja Kinski durante uma aula de literatura enquanto uma das frases do livro – evidentemente longe de ser a melhor – é citada por seu professor com a displicência complacente de quem parece transmitir uma senha mágica. Como Norman O. Brown, cuja Vida Contra Morte conheceu um destino análogo, Leslie Fiedler logo se tornou um símbolo hip que passou a cool que passou a pós-moderno – termo, aliás, que muitos acreditam, baseados no dicionário de Oxford, que tenha sido inventado por ele. Uma multidão infindável de ensaístas que teimava em transformar a união entre a cultura erudita e a popular numa trincheira pessoal foi irremediavelmente influenciada por seu estilo – cuja inflexão pode ser identificada até nos balbucios histéricos de uma acadêmica menor e tagarela como Camille Paglia. Fiel á sua paixão moral pelo pop, Leslie Fiedler nunca se importou muito em cultivar uma imagem estrategicamente avessa à consagração oficial: embora tenha sido um dos mais discutidos e homenageados críticos da segunda metade do século passado, ele sempre fez questão de manter seu currículo disponível na Internet – e numa de suas aparições públicas mais célebres deve ter se divertido muito ao ser visto durante um concerto de Bob Dylan ao lado de Allen Guinsberg e O. J. Simpson. Mas até esse flerte quase protocolar com a tradição pop não deixava de se revelar inevitavelmente problemático: talvez Leslie Fiedler nunca tenha aceitado com muita satisfação o fato de que seu livro mais vendido tenha sido Freaks, seu estudo sobre a mitologia das aberrações – um ensaio cuja popularidade possivelmente se deva à combinação elementar do prestígio de seu nome com a série bizarra de fotos que ilustravam o livro. Mas no fim das contas, como um venerável e desafortunado mandarim, é mais que provável que o grande acontecimento da última fase de sua vida – uma tragédia cuja era menção me arrepia – tenha sido o desastroso incêndio de sua biblioteca de mais de cinco mil livros (incêndio que incinerou, entre outros tesouros, seu exemplar da primeira edição de Ulisses, que Leslie Fiedler mantinha com previsível fervor).
Suas fórmulas mais inesquecíveis são numerosas demais para serem catalogadas; o importante é que Leslie Fiedler escreveu com uma eloqüência ensandecida que tornava sua crítica veemente como um uivo, urgente como uma descarga elétrica e excitante como o verão. Ostentando até o fim seu judaísmo como uma inflamada qualidade retórica, Leslie Fiedler tratou a crítica da cultura com o furor de um profeta intransigente, turbulento e alucinado.
Assim que concluiu Moby Dick, Herman Melville enviou uma carta para Nathaniel Hawthorne comentando como se sentia. “Escrevi um livro malvado”, ele anotou, “mas me sinto puro como um cordeiro”. Deve ter sido a mesma sensação de Leslie Fiedler quando terminou de escrever Love & Death in American Novel.



Um comentário:

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