segunda-feira, 3 de setembro de 2007

NA BEIRADA DA CAMA . Conto

Ok, ok. Mais um conto para esses filhos bem criados, de infância colorida na chácara dos avós, que não vivem sem ficção. Eu também fui um desses, assumo. As colinas entre a neblina matutina ficaram encravados na memória tal qual o cheiro do café e o riso primaveril das primas.

Mas agora...
Só estrondos e enxofre
Cuidado
Abaixa



Por Eduardo Pimenta

Na beirada da cama, um infarto fulminante. No exato momento em que mamãe morreu, estava eu copulando com dois belos espécimes africanos, num desses bangalôs de turistas. Via satélite a notícia. Um desconforto, o sol entrando pelas frestas, os corpos tépidos estendidos num xis pelo chão. Alheios. A vida é mesmo sobre sexo e morte. Hoje tenho mais um dia de trabalho duro pela frente. Nenhum tesão especial para levantar da cama. Seria um pé após o outro até o banheiro, o espelho no corredor revelando em passant as carnes opacas, para só então abrir a torneira e tentar desencalacrar da boca aquele que é o mais denso extrato do cabo de guarda-chuva, produto do porre de Pernod com soda que tomei no dia anterior. O cheiro daquilo.

Toquemos adiante.
Ainda estou sentado na cama, o que faz uma grande diferença. Em minutos terei deglutido uma torrada com geléia no caminho para o estacionamento, não sem antes dar dois bons dias. Um para a vizinha que quer dar para mim e eu não quero comer e outro para a vizinha que eu quero comer e não quer dar para mim. Enfim, tenho nojo do meu automóvel. Sinto ódio por ele. No meu conceito, significo menos que ele na ordem geral das coisas. No conceito ele, idem. É girar a chave no contato e lembrar que esqueci algo em cima da mesa. Às vezes volto para buscar. E então estou de volta, de onde nunca saí. Vou aos betabloqueadores para a pressão arterial, dou uma passada d’olhos nos headlines da TV e sou acometido por uma libido meio mórbida. Fico tesudo quando estou de ressaca. Reatar o nó da gravata, checar as ramelas renitentes e pegar a porra do crachá em cima da mesa. Sou uma pessoa de crachá. Esse é para mim um excelente motivo para ensebar ao máximo antes de sair de casa.
O crachá serve para controlar meu trânsito no trabalho. Eles sabem tudo. Quantas vezes entrei e saí do prédio. Quanta vezes desci à lanchonete. Quantas vezes tive vontade de assassinar alguém e não o fiz porque, com um crachá desses, me falta um álibi e sobram testemunhas de acusação. É nesse ambiente gostoso de ampla liberdade em que trabalho. Sou pago para reproduzir versões atraentes de fatos cotidianos. Não posso exagerar no “atraentes”, porque aí iriam me chamar de escritor, o que é péssimo do ponto de vista profissional. Hemingway se fodeu bastante com essa confusão que, talvez, fosse boa idéia me alongar na cama por mais alguns minutos. Pensar no trânsito dá arrepios. Tenho pavor de velhinhas amarfanhadas com xale azul, escondidas atrás do volante de um Corsa, como a que vi ontem.
Estou numa fase em que ao acordar penso invariável e fixamente na cachaça depois do serviço. É o meu graal, mau alento, meu leitmotiv. Convivo desde os 12 anos com a irrefreável vontade de abrir uma lata de skol pela manhã. Bem, se fosse enumerar esses pequenos delitos morais que cometo sem perceber levaria uma vida inteira. Uma vida. Quando vai chegando lá pelas quatro da tarde começo a sentir cheiro de provolone á milanesa. É um dia de trabalho duro o que terei pela frente. Rotina, apenas. Sem comentários. E depois, como faço sempre, chegarei em casa trôpego, ansiarei por um último cigarro e dormirei com a televisão ligada. Último cigarro. Horas de sonho intranqüilos. Ao despertar, mais uma vez não saberei bem porque tenho de levantar. Se é que tenho.
Na beirada da cama, um infarto fulminante.

EDUARDO PIMENTA é jornalista e escritor, autor de O Homem que Não Gostava de Beijos.


Tenho publicado cada vez mais, e com maior freqüência, então... Um grande abraço (ou, logo que eu consiga desatar as mãos, heheh, aarrgghh!!!)

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