Ainda há água no pote ao lado, mas começo a me preocupar.
Enquanto a noite não chega, trazendo no encalço lobos carniceiros, lembro-me de uma passagem lida antes do golpe que aqui me aprisiona:
17
- brilhou o número. Entreguei minha senha. São cinco mil reais, ela disse, sem olhar para mim, preenchendo um formulário. Aquilo me pareceu muito seco. E o tempo? – eu quis saber, passando-lhe o cheque. Por esse preço, eles devem ganhar muito dinheiro. Tempo? – e ela sorriu, não exatamente com ironia. Talvez ela me achasse ingênuo. Uma pequena ansiedade – já havia alguém com a ficha na mão, esperando o 18 brilhar. Sempre sorrindo, a funcionária apontou o dedo para o fundo do corredor.

Uma tarde tranqüila naquela rua que, primeira impressão, me pareceu pequena demais, como uma fraude. É aqui mesmo? Tentei lembrar do que eu havia escrito na requisição e sorri nervoso, pensando naquele seriado imbecil, A Ilha da Fantasia. Eis o meu desejo: o tempo. Pois bem, parece que é isso – ou só isso. No momento seguinte senti uma brutal felicidade: sim, era naquela casa mesmo, cinqüenta anos antes. E senti poder; nada pode me tocar. Tudo é irremediável, e isso, pelo menos aqui, é muito bom. Avancei para o portão, com uma sem-cerimônia afinal grosseira, percebi, quando o menino largou o carrinho de matéria plástica no degrau e me olhou assustado: quem é esse homem barrigudo, ele parecia perguntar, e naqueles olhos arredios como que adivinhei cada fiapo de idéia. Avisar o pai, é o que ele queria, o que me deu a senha: O seu pai está? E sorri. E só então – o momento mais brutal da minha vida – percebi quem afinal era o menino e senti a densa hostilidade com que me olhava. A crianças são seres totalizantes, eu mesmo me desculpei. Ele não pode imaginar o que – o quê? Ele só pode imaginar. A hostilidade aparente se transformou numa concha de medo, mas não muito. Esticou o braço sem tirar os olhos dos meus olhos – foi a minha vez de sentir estranheza. A calça curta, os suspensórios, a camisa, a boina. A imagem de uma nitidez absurda, e, no entanto sem paz – um cromo vivo e tenso. Talvez ele me acusasse, se soubesse. Contornei a casa branca – tudo menor do que eu imaginara – e vi meu pai atrás de uma pequena cerca divisória, erguendo uma galinha pelas pernas, como um troféu. Sem camisa, costelas à mostra, a magreza de um branco queimado. Era quase como um retorno triunfal, eu sonhei durante dois passos, até receber nos olhos aqueles olhos de então – toda a sua fria beleza se concentrava neles – e a galinha silenciou abruptamente, na paz da cabeça para baixo. Ele esperava que eu falasse – talvez eu quisesse comprar a galinha. Ou. Ele aguardava a minha palavra: na imediata organização daquele cenário eu era o mais velho e o mais importante.

CRIATOVÃO TEZZA é autor, entre outros, dos romances A Suavidade do Vento e O Fotógrafo.
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