quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A TRADUÇÃO DA IGNORÂNCIA

O kitsch é o desejo de agradar, e para agradar é preciso repetir o que todo mundo já sabe.

A história se repete e se repete outra vez com o mesmo negativo de sempre. Numa conversa com um grupo jovem de teatro off-off de São Paulo, ouço que a arte deve tratar da realidade e de uma realidade determinada, a objetiva - e não só da realidade objetiva como da realidade objetiva do coletivo. E de um curador não tão jovem, em outro contexto, escuto que a arte hoje não trata “do social” e que é preciso haver, algo de “simples” intensidade subjetiva e da fina sensibilidade. Era essa mesma a crença da resistência política nos anos 60/70 neste país que cansativamente se repete e é dela que alguns sentem falta, embora o século seja outro.
A questão não é se a arte e seu autor devem participar da discussão pública de seu tempo, comprometer-se ou não com a “realidade”: impossível, quase, evitar uma coisa e outra. A questão é como fazer isso. A ética da arte não está no seu grau de compromisso com a realidade, com a objetividade (remember Nelson Rodrigues e sua luta contra os “idiotas da objetividade” que o queriam encurralar) ou com o coletivo. Nem ao contrário disso. A ética da arte (romance, cinema, teatro) não está tampouco, como já se quis, na informação ou no saber que propaga.
A ética da arte depende de seu compromisso com a existência, que é singular (não com a realidade, que é geral), e do jogo que arma com o que h
á de desconhecido nesta existência. Expor o desconhecido não significa afirmar ou divulgar um saber – que na arte é quase sempre o já sabido. Em arte, o saber gira, como máquina solteira, ao redor de certezas e de idéias feitas. Já o jogo com o desconhecido, e sua eventual anulação ou superação, se faz na arte ao redor da incerteza e, na arte contemporânea, da complexidade – quase nunca isenta de perplexidade. O artista não é porta-voz da informação, nem do saber, ou da realidade, nem da objetividade e do coletivo. Nem de si mesmo. O artista contemporâneo é aquele que cria as condições, na obra, para que nela se processe o trabalho específico de sua arte – o trabalho do filme, o trabalho do romance, o trabalho da pintura – que, mais do que representar a existência, a põe em ação. Para ele mesmo e seu público. A arte contemporânea é esse trabalho, ele próprio uma existência – uma existência maior do que seu autor e seu público, razão pela qual esse autor não a controla e não a pode usar para transmitir informações, idéias feitas. Porque ele não sabe, antes de fazer a obra, quais serão essas idéias.
Romances que não acrescentam nada ao já sabido (e à arte) por serem “objetivos” e tratarem “da realidade” existem aos montões. Obras de arte visual, também. Caso recente é a série que Botero fez sobre as torturas praticadas pelos americanos em prisioneiros de Abu Ghraib. O termo para designar essa série é aquele que Milan Kundera privilegiou em suas reflexões sobre o romance moderno: kitsch, puro kitsch, quer dizer, a tradução da ignorância, feita de idéias feitas, na linguagem suposta da beleza artística e da emoção (no caso, da compaixão). O kitsch é o desejo de agradar, e para agradar é preciso repetir o que todo mundo já sabe e quer ouvir de novo. E agradar é pôr-se a serviço das idéias feitas. Não há, neste Botero, nenhum trabalho da arte. Nada mostra, nessas telas, que alguma foto e alguma reportagem não tenham mostrado antes e melhor. Que a rede Al Jazeera descreva a série em seu site como uma “brilhante coleção” de pinturas é previsível e irrelevante. Que o New York Times, pelas mesmas razões políticas ou quase, apresente Botero como o “mais conhecido artista latino-americano” – como quem diz “o melhor” – é mais grave, pela reiterada ignorância do norte sobre as coisas deste sul contur
bado mas não incognoscível. Falar em Botero e ignorar João Câmara, por exemplo, além de oportunismo, é um insulto à inteligência da arte. (Aliás, esse tipo de arte é quase sempre oportunista.) Em cada tela de João Câmara sobre o mesmo tema da política e da tortura (por exemplo, Uma Confissão, 1971), há todo um trabalho da arte do qual Botero não têm nem idéia. Que a revista americana Counterpunch, também para louvá-las, sugira uma proximidade entre essas telas de Botero e Guernica (1937) de Picasso é outro assalto á sensibilidade – uma tortura contra a arte sob a aparência de crítica à tortura e à guerra. Guernica é um caso maior da ética da arte em relação à realidade; não há, nela, concessão alguma, nenhum primarismo estético ou social. Como Premonição da Guerra Civil (1936), que Dali pinta no início da conflagração espanhola.
A questão, outra vez, não é participar ou não da discussão pública de seu tempo e tratar ou não da realidade, mas sim, como se faz isso.

João Câmara, Picasso, Dali o fazem do único modo ético da arte contemporânea: o da complexidade, criando espaço para que a perplexidade se instale ali onde não pode deixar de estar. A “mensagem” dessas três obras pode parecer agora direta, simples – e isso porque ela já se cristalizou pela força dos comentários e da experiência acumulada (que nem mais vivida a rigor é, por uma parte do público). De modo algum, porém, nesses três casos, a mensagem é uma idéia feita. Em nenhum deles é um kitsch.
A ética da obra de arte, do romance, do filme (Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira, é outro caso ético de arte contemporânea: a “realidade objetiva” está ali, mas o tom é de complexidade e perplexidade) não reside em seu compromisso com a realidade, com o coletivo ou com essa coisa monstruosa que o Walter Benjamin jovem defendeu: a objetividade extremada. Como Kundera já foi citado, melhor seguir com ele e lembrar que a ética da arte não está nem no compromisso com deus (qualquer deles), nem com a pátria, nem com o povo (nem com o partido ou com a causa), mas no compromisso com a herança mais radical da arte. Kundera não vê essa ética no centro de sua própria obra; nisso dele divirjo. Em última instância, porém, minha aposta é a dele: a ética da arte contemporânea está no seu compromisso com essa arte e com nada fora dela.

Teixeira Coelho é professor da ECA-USP e autor de Guerras Culturais, entre outros.

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