quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O NOVO MACHISMO

Hoje...
Do telhado, (sé é que se pode chamar assim estes pedaços de madeira podre que me cobrem) ainda há pouco, pude sentir a chuva pelas frestas...
Desenhei meio-sorriso.
Foi assim: primeiro eu acordei com o barulho do próprio estômago, e os pássaros passaram em revoada - os eucaliptos são sua diversão. O cheiro forte da mata, frio, ranger de tábuas... O vento trouxe a umidade de tão alto.
Depois: a torrencial tempestade de verão.
Estiquei a língua... sim, a água.
Apesar da pouca inteireza deste casebre perdido, da solidão dos lobos lá fora trincando os dentes na porta, (desejando a minha carne por companhia imediata) sinto a presença de algo maior, maior que tudo isso. Ouço na lembrança as músicas e o olhar de meu filho. E já não me sinto tão...
A tempestade trouxe ameixas amarelas pelo teto. Lembrei-me da infância em ensolarada escarpa... volto lá um dia.
Mas por hora, me concentro nos rostos dos seqüestradores...

Mais uma pancada!

E já não vejo coisa alguma...

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O NOVO MACHISMO

A mulher é um mutante. Não somente porque oscila, em hormônios e humores, mas porque é um dos poucos seres capazes de transfiguração sem jamais atingir uma forma definida. E para comprovar essa teoria nada mais efetivo que um passeio pelas ruas.
A constatação mais imediata é que tem mulher saindo pelo ladrão, em bares e cafés, vídeo-locadoras e cinemas. É um bichinho bonitinho a mulher, gracioso, mas depois de contemplar meia-dúzia de beldades vem o espanto inevitável – elas são todas iguais. Igualzinhas, idênticas, não só do cóccix ao pescoço, mas do calcanhar aos bulbos capilares.
Tudo nelas cintila a déja vu, a cópia, num desfile interminável de personalidades ofuscadas pela moda. É a beleza seriada, sendo a indústria nosso (admirável) mundo (novo), esse mundo de andróides sem memória e sem imperfeições, já que a tudo se corrige e se dá a forma desejada. A delas é esbelta, musculosa, glúteos em riste e peitinhos empinados. Os cabelos lisos, pelinhos dourados, seja a moça de ascendência afro ou nipônica, abdome rijo e algum canto bem visível da epiderme tatuado com o emblema de sua tribo, seja lá qual for. O mesmo sapatinho, a mesma calça jeans, os mesmos acessórios, tudo lindo, impecável e uniforme, conferindo ao portador o sentimento de que pertence a esse mundo.

INCLUSÃO E CERA QUENTE
Seria a indústria da moda o grande expoente da (também em moda) iniciativa de inclusão social? Porque, tal como se apresenta, tornou-se o elo universal de agregação e acolhimento, a ideologia contemporânea mais forte: ser igual a todo mundo para encobrir a solidão e o vazio sentimental. E o esforço em adequar-se ao modelo do momento é ainda mais patente nas mulheres, que ao custo de suor e bisturi (e alisamento, e tingimento, e cera quente) estão constantemente em mutação.
Sempre haverá um ideal, já que a postura interior é refletida na aparência. Sendo o Homem um esteta, e previsível que busque a expressão mais burilada. O que preocupa é o modelo acachapante da natureza do indivíduo, muitas vezes renegando o seu código genético e impelindo-o ao ridículo. Adequar-se é a exaltação da ditadura, é atestar que além do aprisionado está-se também muito distante de conhecer o que é autêntico.
Talvez o grande inimigo da mulher seja justamente seu maior profeta, a moda e os estilistas. Porque tanto a indústria quanto seus ícones pedem que ela se esvazie de características intrinsecamente femininas (os quadris largos, tão precisamente projetados para trazer ao mundo a cria; os pêlos pubianos, protetores de sua delicada intimidade; o sangramento, fim de um ciclo e purificação para o seguinte) em nome de algo essencialmente masculino – o lucro econômico.
Se pudesse eleger uma musa inspiradora contemporânea (não vale apelar para Sophia Loren ou Rita Hayworth), nomearia Regina Casé. Porque ela representa tudo quanto não se vê ruas afora. É feminina, seios fartos, quadris amplos, traseiro requebrante e estômago saliente (ela se alegra com a comida); cabelos lindos e sedosos, maio cabocla; dentes ranços, reluzentes, que iluminam o ambiente com o seios; muitas flores, colares e pulseiras. Uma verdadeira festa para os olhos e os ouvidos.
Há quem responda que ela é gorda, e não ousaria desmenti-lo. Ela é mesmo, e a despeito disso esbanja brilho e poesia, sem intenção de adequar-se ou ostentar uma “reforma” visual. Sua mutação é lenta e natural, como a de todo ser que vive, e resguarda o que há de belo, raro e primoroso em estar vivo – a personalidade. Mesmo que doa, mesmo que seja solitário, descobrir uma identidade é o único caminho para a tão sonhada liberdade.

KIKA SALVI é jornalista e escritora, autora de Kika, a estranha e Mulher à Moda Antiga (no prelo).



Um comentário:

Anônimo disse...

Andrew

Fui fazer uma pesquisa de imagens no google para um postagem sobre o mar de mulheres-todas-iguais que vejo hoje, depois de mil tentativas resolvi tentar "mulher aprisionada". E caiu em uma foto daqui. (Que eu dei uma roubadinha básica, tudo bem? :-) ) Inclui na postagem, e quando vim fechar a janela da pesquisa do google resolvi abrir o blog para ler o texto. E as ideias centrais são muuuito parecidas com o que eu falava. Que bom saber que muita gente está começando tomar consciência e nadar contra essa corrente.

Bom demais o seu blog. Vou dar uma fuçada por aqui. :-)

Beijos,
Deb.