sábado, 29 de setembro de 2007

SEJAMOS REACIONÁRIOS

O conceito de engajado é aceito se for revolucionário, mas não se servir a uma nostalgia.

A arte engajada costuma ser um cemitério de talentos ou uma coleção de inutilidades. Consome algumas das melhores vocações e alça à condição de “artista” gente que, no geral, não tem nada a dizer. Não raro, a incompetência se soma à mistificação, e o produto final se justifica por um valor que está fora da própria obra, que lhe é externo. Arte, qualquer uma, não tem função instrumental, não serve para nada. E não tem de servir mesmo. Deve apenas satisfazer as obsessões de seu criador. Quanto mais alienada, melhor!
Quando se fala em engajamento, é claro que se está falando de política. E a política é um discurso de chegada, que busca uma solução para um conflito ou um problema. E assim tem de ser. Só alguns filósofos imaginam que a polis é o lugar da permanente indagação, e não das respostas. É por isso que sempre são maus políticos ou apologistas de candidatos a déspotas. Diria, com algum humor, que, quando se metem em questões públicas, acabam rendendo suas homenagens ao tirano de Siracusa da hora. O governo Lula o aprova. Maiores explicações devem ser buscadas com Renato Janine Ribeiro e Marilena Chauí.

"O bom propósito de um príncipe idiota termina num mar de sangue. "

Se a política não oferece saídas, então não serve para nada: torna-se ou o exercício estéril da utopia – o “lugar nenhum” – ou degenera em terror homicida. E soluções têm de necessariamente fazer a vontade da média, do homem comum, de responder, se democráticas, às expectativas e aos anseios da maioria – e, pessoalmente, só aceito a democracia como regime. A razão de ser do discurso político está na organização da burocracia de Estado e na eficiência do diagnóstico e da solução. O que a literatura, a música, a pintura ou o cinema, para citar algumas artes, têm com isso? Nada. Sua razão de ser está no balanço entre a gratuidade e a contestação: gratuita, não tem outra função que não se exibir, ser o que é com finalidade nenhuma; contestadora, opõe-se justamente ao caráter instrumental do discurso de eficiência.
A esquerda já falou e produziu muita bobagem nessa área. O conceito corriqueiro de arte “engajada” ou de “contestação” (não no sentido que abordo acima) pressupõe que ela seja esquerdista. Ou alguém pensaria no “engajamento” numa variada gama de, como diriam, “reacionários”, a exemplo de Céline, Ezra Pound, Fernando Pessoa, T.S. Eliot, Bernaros, Chesterton, dentre tantos? É claro que não! Afinal, à sua maneira, todos eles expressaram – ao menos o que havia de politicamente perceptível na obra – visões de mundo, ou minoritárias (“minoritaristas” talvez ficasse melhor) ou, de algum modo, inconformadas com o presente, mas nunca revolucionárias. Ao contrário: há um viés antimoderno no que produzem mesmo quando – e nesta pequena lista, os casos mais notáveis são Eliot e Pessoa – as conquistas da linguagem moderna servem a uma nostalgia, mas jamais a um projeto, da restauração.
É claro que aqui entra o viés de quem lê o mundo, de quem escreve (eu, no caso), com todos os juízos de valor e escolhas que me turvam o juízo. Se alguém quer a verdade cristalina, neutra, incontrastável, que vá ler Os Dez Mandamentos. Mas não há de fazer, especialmente se cumprir à risca os preceitos. Nas minhas escolhas falíveis, confesso a enorme indisposição com o discurso da denúncia, quase sempre acompanhado de auroras febris, que, curiosamente, seguem a crítica engajada como um cortejo de ninfas, em vez de precedê-la. Sempre que, numa obra, identifico o esforço para me venderem um herói da redenção, sem mácula, portador de algum amanhã escondido na algibeira, passo a torcer imediatamente para o bandido. Por que não posso ser só? Por que preciso de uma causa?
Ora, todos já lemos Hamlet, o menino maluquinho, mas com método, como queria Polônio. O bom propósito de um príncipe idiota termina num mar de sangue. Ele evoca a sanha homicida dos puros, o potencial assassino dos que querem justiça a qualquer preço. Hamlet, diga-se, seria assim uma espécie de artista de esquerda: recorre até a uma peça engajada, com intuito instrumental, para ilustrar e denunciar a trama que julga estar em curso no reino. E quem restabelece bom senso? Fortimbrás, que, numa seqüência que não houve, certamente conduziria o reino a uma mediocridade pastosa e estável. Era um bom político.
A minha indisfarçável simpatia está mais com os sonhos frustrados de restauração do que com a revolução porque o passado, sim, é a única e verdadeira utopia, o lugar que, de fato, não pode ser alcançado. Todas as nostalgias e todas as críticas e crônicas de uma ordem ameaçada que ambicione (ou ambicionasse) ser eterna me interessam. Acato o discurso político que se imiscui na obra de arte como o fazem Balzac, Proust ou o nosso gigante único, Machado de Assis, este secundado por Graciliano Ramos, que não permitiu que o comunismo lhe diminuísse a obra, felizmente. Em qualquer desses casos, têm-se a caracterização do espírito do tempo, de uma cultura, de uma, vá lá, metafísica de relações sociais que nada são além de uma personagem a mais – a exemplo da história que vivemos. Afinal, quem de nós consegue fatiar a própria história para fazer sociologia pessoal?
Nada do que considero de fato superior se rendeu a um projeto de futuro ou buscou a justiça imberbe de utopistas tarados por sangue. Com Eliot, tenho Virgílio na conta do sumo e do ápice de uma civilização. E ele fez, a exemplo de Leonardo ou Michelangelo, obra de encomenda – todos eles no conforto de uma civilização triunfante, que julgavam durar eternidade afora. O que há de contestador no que deixaram, e há, foi fruto do talento individual, de uma compreensão única de sua época, de anseios jamais compartilháveis. Tornaram-se marcos de uma civilização porque não se deixaram capturar nem mesmo por quem lhes sustentava a pena, a tinta ou o cinzel.
Se um artista não deve se render nem a quem lhe forra o estômago, por que se renderia a utopistas que lhe vendem baratinho um bocado de justiça social, mas só quando o amanhã chegar?

Reinaldo Azevedo é diretor de redação da revista e do site Primeira Leitura e autor de Contra o Consenso.









O "Machado" de Assis!

Um comentário:

Anônimo disse...

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